sábado, 10 de agosto de 2013

POR ONDE ANDA AQUELE FUSCA DA CAPA DE ABBEY ROAD?

     Um pedreiro ajuda a construir um prédio de luxo. Não será ele um dos condôminos. O dinheiro que ele ganha por ajudar a construir o prédio de luxo não é o suficiente para pagar nem mesmo as janelas de um dos apartamentos do prédio. Mas ele continua ajudando a construir o prédio de luxo. É assim que funciona. Outra pessoa comprará um dos apartamentos do prédio de luxo. Essa outra pessoa tem muito dinheiro. Certamente ela não ganhou esse dinheiro construindo prédios de luxo. Talvez o pedreiro tenha trabalhado muito mais durante toda a vida do que essa outra pessoa. É assim que funciona. O pedreiro está feliz. Não se importa em não morar no prédio de luxo que está ajudando a construir, afinal, o importante é ganhar o salário e sobreviver. As pessoas são felizes assim. Está bom apenas sobreviver. Tentar algo diferente traria muita dor de cabeça. É assim que funciona.
     Fabíola chegou em casa. Já era noite. Para variar, chegou querendo encher a cara. Fabíola só aparece em casa para isso. Ou então quando briga com o namorado e precisa de lugar para esfriar a mente. Não recrimino Fabíola. Não existe nada mais difícil de se encontrar do que um amigo que abre as portas de casa e, ainda por cima, oferece bebida alcoólica. Mandei que pegasse uma garrafa de vinho vagabundo que estava esquecida na geladeira. Voltou bebendo no gargalo. Ficou um tempo falando do novo subemprego que arranjara. Era uma espécie de fábrica que empacotava cigarros para serem vendidos em algum lugar distante.
     "E você pode fumar?"
     "Só se eu quiser ser demitida"
     "Então você empacota cigarros o dia todo e não pode fumar nem unzinho? Qual é o sentido disso?"
     "Sei lá. O salário é ok"
     "Bom, é assim que funciona, não é mesmo? Olha pra essa garrafa, por exemplo. Já parou para pensar que tem alguém que fabrica esse vinho? Quer dizer, deve ter um número grande de pessoas, desde aqueles que fazem a colheita das uvas ao pessoal que coloca no tanque de fermentação, então o vinho fica lá envelhecendo e depois deve ter gente trabalhando no processo de engarrafamento e as pessoas que transportam o vinho para o lugar que você comprou e o repositor do supermercado etc"
     "Você conseguiu cortar o tesão do vinho, Gregório"
     "Porra, Fabíola. É sério. Entende onde quero chegar? Muitas pessoas passaram pelo processo de fabricação até que esse vinho chegasse aqui, fosse consumido por mim em algum momento, ficasse mais um tempo na geladeira e finalmente chegasse ao consumidor final"
     "E daí?"
     "E daí nada, achei que você já tinha pensado nisso. As coisas passam de mão em mão e a gente nem se dá conta. É essa mesma merda que você está fazendo"
     "É, é, deve ser"
     Coloquei o Abbey Road para tocar. Paul abafando o "Shoot Me" de John com o baixo é a melhor forma de iniciar o melhor álbum de todos os tempos. Encontrei uma lata de cerveja perdida na geladeira. O mundo seria outro se todos encontrassem uma lata de cerveja perdida na geladeira. Estava bem gelada. Voltei feliz para a sala.
     "Sabe, Gregório. Eu acho que já pensei nessas coisas sim. Sabe, o limpador de piscina que nunca usa a piscina ou o cozinheiro de restaurante caro que nunca terá dinheiro para levar a família para jantar. Muito foda"
     "É disso que eu estava falando"
     Ficamos bebendo e olhando para a parede durante um tempo. Harrison cantava Something. Parecia que estávamos em transe. Eu pensava em todas as pessoas que passaram pelo processo de fabricação do vinho e da cerveja. Já que elas não puderam aproveitar a bebida enquanto ajudavam na fabricação, ao menos mereciam um gole. Mas apenas Fabíola estava em casa naquele momento. Aquele solo de guitarra era fantástico. Sabe, Fabíola pode comprar cigarros e talvez o limpador de piscina consiga entrar na piscina escondido e cozinheiros até que devem ganhar bem. Eu queria mesmo era dar um gole de vinho para os trabalhadores da colheita. Peguei papel e caneta e comecei a escrever.
     Um pedreiro ajuda a construir um prédio de luxo. Não será ele um dos condôminos. O dinheiro que ele ganha por ajudar a construir o prédio de luxo não é o suficiente para pagar nem mesmo as janelas de um dos apartamentos do prédio. Mas ele continua ajudando a construir o prédio de luxo. É assim que funciona...
     "O que está escrevendo?"
     "O começo de um novo conto. Talvez"
     Não tinha visto o tempo passando. O álbum chegava ao fim. Ringo Starr estava em seu épico solo de bateria. Tudo que é bom, acaba. É assim que funciona.
     "Tem mais vinho?"
     Saímos para comprar.

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sábado, 3 de agosto de 2013

ESTOU CHEIO DE TESÃO E NENHUMA BUNDA ME AGRADA

     Acordei. Estava em um lugar estranho. Não reconhecia as pessoas que estavam comigo. Lugar fechado, escuro, com pessoas dançando e bebendo seus drinks de vinte e cinco reais feitos a base de vodka. Um cheiro insuportável de mijo. Não sei por quanto tempo havia cochilado.
     "Gregório, conta de novo aquela história da vez que você se perdeu em Santa Teresa"
     "Mas quem são vocês?"
     "Esse Gregório é hilário mesmo"
     E aquelas pessoas que eu não conhecia riam como se fossem meus melhores amigos. Uma ruiva nariguda ficava esfregando a coxa em mim por debaixo da mesa. Ela usava piercing no nariz e tinha seios pequenos. Completavam a mesa uma garota gorda de cabelo alisado e voz insuportável e um negro que era a cara do Anderson Silva. O negro encheu o meu copo de cerveja e a gorda me olhou atravessado.
     "É sério, quem são vocês?"
     "Quer um histórico detalhado de cada um?"
     "Quero o mínimo para saber onde estou e o que estou fazendo aqui com vocês"
     Deram risada. Não estavam me levando a sério. O negro que era a cara do Anderson Silva bateu nas minhas costas e repetiu que eu era hilário. Eu não estava achando graça alguma. Levantei e fui ao banheiro. O caminho me pareceu familiar. Mijei em pé. Não tinha água na torneira, então não lavei a mão. Um barbudo com jeito de árabe ficou me encarando na saída. Impediu que eu passasse.
     "Qual foi?"
     "Você sujou o chão"
     "Como é?"
     "Você mijou na porra do chão"
     "Vai tomar no seu cu, você é a minha mãe?"
     "Fala direito comigo"
     "Foda-se você. Habib's de merda, vai encher os colhões de outro"
     Tentou me dar um soco, mas consegui desviar. Ele foi em direção as minhas pernas e me empurrou contra a parede. Trocamos alguns socos, mas ninguém conseguiu pegar o outro em cheio. Logo juntou uma pequena multidão em volta e o segurança me agarrou pelo braço e me expulsou daquele lugar. O Al Jazira continuou por lá. Achei justo. Mas eu ainda não sabia onde estava. Agora o meu corpo doía. Comecei a andar sem direção. Acho que a minha vida sempre se resumiu a isso. Andar sem direção e não reconhecer as pessoas que estavam ao meu lado. E eu nem preciso estar sob efeito de álcool para isso acontecer. Eu andava sem direção, morrendo de vontade de sair gritando e correndo. Ao menos seria uma forma de me divertir. Fiquei apenas na vontade. Encontrei um bar. Sentei e logo fui atendido por um garçom careca:
     "Boa noite, chefe"
     "Traz uma cerveja"
     "Só tenho Itaipava e Skol"
     "Que merda. Traz Skol que é menos pior"
     Observei as pessoas. Eu gostava de observar as pessoas. Existe nisso uma sensação inexplicável de poder. É como um biólogo que observa um formigueiro ou um chefe que observa os seus funcionários pelas câmeras de segurança trabalhando oito horas por dia em algo que detestam ou um poder supremo que observa a todos nós através de sua onipresença. Eu realmente gostava de observar as pessoas. Ao longo do tempo comecei a perceber que cada um possuía uma peculiaridade. O que é comum a todos é que são todos detestáveis. Uns mais do que outros. O ser humano se distingue dos outros animais pelo polegar opositor e por ser detestável. Naquele bar não era diferente. Até mesmo o garçom careca, que até então fora muito simpático, uma hora ou outra passaria a ser detestável.
     Observei numa mesa algumas louras com camisetas do Ramones. Parecia ser o fã-clube do Ramones. O clube das louras gostosas fãs do Ramones. Algo desse gênero. Não me senti atraído por elas. Eu estava cheio de tesão, mas nenhuma daquelas bundas me agradaram. Nenhuma bunda daquela espelunca me agradava. O que Joey Ramone faria no meu lugar? Provavelmente o mesmo que eu: beberia sozinho e esperaria que algo acontecesse. Mas esse algo nunca acontece. Eu poderia ficar o resto da minha vida naquela mesa de bar bebendo garrafas e mais garrafas de Skol e nada aconteceria. Eu nem queria que algo acontecesse. Eu só esperava porque era o que me restava. Nada acontece. Nada.
     Pedi mais uma Skol, bebi metade da garrafa e levei o resto em um copo plástico descartável. Estava andando sem direção, novamente. Eu estava muito cheio de tesão. Bebi rápido a cerveja. Encontrei um posto de gasolina grande, daqueles que possuem a sua própria rede de loja de conveniência. Comprei uma garrafa de vinho e cigarros. Fiquei do lado de fora, no canto do posto, fumando e bebendo. Era perigoso fumar ali, perto das bombas de gasolina, mas eu não me importava. Os frentistas também não. Acho que se tudo explodisse estaria tudo bem. Ninguém se preocuparia. Talvez o jornal da tarde teria uma boa manchete. Uma garota me pediu um cigarro. Não sei de onde ela saiu. Começou a falar sem parar.
     "Você não sabe quem eu sou? Você tem certeza que não sabe quem eu sou? Eu usei LSD com os Mutantes! Eu cheirei com o Cazuza! Eu me embriagava com o pessoal da Blitz! Eu que descobri Flávio Basso, antes mesmo do Cascavelletes existir! Eu fui presa com o Lobão! Eu dei pro Roger do Ultraje! Eu que sugeri o nome do Aborto Elétrico e depois do Legião Urbana! Eu fui a inspiração para Bete Balanço! Eu patrocinei o Hanói-Hanói! Eu chupei o pessoal do RPM!..."
     Ela continuou falando. Fui até o banheiro do posto. Não era a primeira vez que me masturbaria naquele banheiro. Esperava não ser a última. Cinco minutos depois eu estava de volta. Ela continuava:
     "... eu comi a namorada do Joey Ramone, eu..."
     A bunda dela não me agradava nem um pouco. Se ela não calasse a boca eu provavelmente chutaria aquela bunda magra dela. Bom, pelo menos eu não estava mais sozinho e nem cheio de tesão. Apesar de tudo, a noite terminaria bem. A noite sempre termina bem. Fumei outro cigarro.

(Texto disponível também no endereço: www.blahcultural.com/estou-cheio-de-tesao-nenhuma-bunda-me-agrada/)

sábado, 27 de julho de 2013

E NÃO HÁ SENSAÇÃO MELHOR DO QUE ESSA SENSAÇÃO DE LIBERDADE

     João é aquele tipo de amigo que você encontra uma vez a cada dois meses para beber uma cerveja e bater um papo interessante. As nossas conversas constantemente atravessavam a madrugada. Lá estávamos nós outra vez. Já devia ser a décima segunda garrafa de cerveja. Era bom não estar sóbrio. Estávamos num lugar bem arrumado com mesas de sinuca recém adquiridas, uma jukebox moderna e cerveja barata. O que mais se pode querer nessa vida? Tinham três garotas jogando sinuca. Suspeitávamos que eram prostitutas, daquelas de luxo, que fazem programa para pagar a faculdade de publicidade e propaganda. Na jukebox tocava Eric Clapton. O pessoal daquele lugar tinha bom gosto. Falávamos sobre o capitalismo. João então começou a se queixar.
     “É que às vezes eu paro e me pergunto: pra quê? Como lutar contra esse sistema vigente? Será que vale a pena, Gregório, viver essa minha vida medíocre? Sabe, eu não me sinto mais atraído por essa rotina de acordar, trabalhar o dia inteiro para ganhar algum dinheiro, chegar em casa cansado, ligar o televisor e ser bombardeado por propagandas que me mostram o quão merda eu sou e o quão aceitável pela sociedade poderei ficar se comprar coisas que eu não faço a mínima questão de ter, então eu concordo com a porra da TV e troco parte do meu dinheiro por algo que logo vai ser jogado fora, então fico depressivo por não ter dinheiro e novamente preciso acordar para trabalhar o dia inteiro, et cetera, et cetera. Não me sinto mais a vontade fazendo isso. Não sou mais feliz, Gregório. Entende o que quero dizer?”
     “Sei lá”
     “Como sei lá?”
     “Sei lá, João. Não sabendo. Nunca pensei nessa porra”
     “Nunca pensou? Você é um escritor, Gregório. Em algum momento da sua vida você deve ter pensado nisso. Artistas pensam nisso o tempo inteiro. Eu não, eu sou só um velho gordo que curte The Who, anda de moto, trabalha numa merda de escritório o dia inteiro e reclama da vida”
     “Acho The Who do caralho também. Viu os shows recentes que estão fazendo?”
     “Porra, Gregório, estou falando sério”
     “Calma. Eu entendo essa sua insatisfação. É que, sei lá, eu escolhi outro estilo de vida, então não fico pensando muito nisso. Não tenho esses tipos de questionamentos. Eu trabalho quando quero. Não sou atingido pela mídia de massa. Estou cagando para plano de carreira, aposentadoria, FGTS, 13º e para todo o resto”
     “E você sente que está fazendo a coisa certa?”
     Então eu parei para pensar. Na verdade, eu parei para pedir a décima terceira garrafa de cerveja. Aproveitei e comprei cigarros. Os meus estavam acabando. Eu consigo pensar muito melhor quando estou com cerveja e cigarros. Quando a cerveja e o cigarro chegaram eu comecei a pensar: eu estava fazendo a coisa certa? O que eu poderia dizer sobre a minha vida? Subempregos temporários e muitas apostas. A aposta de que um dia alguma grande editora publicaria algum romance meu – e a aposta de que haveria um público para isso. E com o sucesso viriam festas, dinheiro, jantares fartos. Mas via esse sonho, com o passar dos anos, ficando cada vez mais impossível de ser atingido. Eu continuava passando fome. Eu continuava buscando um pouco de felicidade no álcool e no cigarro. E se o João não estivesse pagando a cerveja, eu certamente estaria bebendo cachaça para ficar bêbado mais rápido e gastar menos no fim. Quando mesmo eu tinha me transformado em um alcoólatra?
     “Não sei se estou fazendo a coisa certa”
     “É disso que estou falando”
     Uma das garotas da sinuca fixou o olhar em mim. João me alertou. Eu não me importei. O dinheiro que eu ganhava no mês não pagaria nem mesmo um boquete dela. Mas a questão não era essa. A questão é que há tempos que eu não parava para avaliar o quão fodida estava a minha vida. Eu me sentia sentado em um vagão de trem enquanto via a minha vida passar pela janela. E eu sempre tive consciência disso. Eu sempre observei a vida passar. Acontece que eu nunca pude fazer nada. Eu nunca pude levantar do vagão. E agora, naquela mesa de bar, conversando com João, com as futuras publicitárias me encarando, na décima e lá vai porrada garrafa de cerveja, eu estava tendo a chance de descer do vagão. Sim, o trem finalmente me dava uma chance. E a minha vida lá atrás, bem longe de onde eu estava. Mas o trem estava parado.
     “João, desculpa, eu preciso ir embora”
     Eu precisava descer do trem. Eu precisava rever a vida, que há tanto tempo ficou para trás. Olhei diretamente para a luz que vinha do outro lado da calçada. Aquela luz amarela dos postes do centro da cidade me deixava com náuseas. Mas era um soco de realidade no estômago. Era a única prova de que eu não estava delirando. Deixei um trocado para ajudar na cerveja. João recusou. Ele ainda insistiu para que eu ficasse um pouco mais, que me levaria em casa depois, sem problemas, mas eu não aceitei. João é aquele tipo de amigo que entende quando você precisa partir assim, repentinamente, sem mais nem menos. Eu realmente precisava partir. Eu realmente precisava andar. Eu precisava ir para outro lugar. Eu precisava ir atrás da minha vida. E eu fui.
     Andei muito. Não lembro o que pensei nesse tempo em que andei, mas sei que andei muito. Conhecia todas aquelas ruas. Atravessei avenidas inteiras. Passei por viadutos e praças. Eu estava indo atrás de algo que eu não sabia o que era. Eu estava indo atrás de tudo aquilo que eu deixei de viver. Mas não sabia exatamente o que era. Era uma busca abstrata. Eu já estava quase na saída da cidade. Estava amanhecendo. A sensação de estar na rua quando está amanhecendo é uma das melhores que existem. Dá tesão. Inclusive, meu pau estava duro. Não havia conotação sexual. Meu pau estava duro porque a energia que corria pelo meu corpo era uma energia nova. Era uma energia que eu nunca poderia ter se continuasse sentado no vagão. E eu não sabia o que era. E precisava saber? Sentia que estava pronto para escrever um novo romance a qualquer momento. Encontrei um boteco aberto. Era a minha salvação. Era tudo o que eu precisava naquele momento.
     “Bom dia. Tem cachaça?”
     “Seleta e Boazinha”
     “Vê um dose da Boazinha”
     O sol nascia enquanto eu bebia e olhava para a rodovia. As pessoas em seus carros rumo à capital. Algumas a trabalho, outras a passeio. E eu bebendo a minha Boazinha. Eu estava bem. Eu estava feliz. Eu estava fora do trem. E não há sensação melhor do que essa sensação de liberdade.


(Texto disponível também no endereço: www.blahcultural.com/e-nao-ha-sensacao-melhor-do-que-essa-sensacao-de-liberdade/)

sexta-feira, 26 de julho de 2013

COMUNICADO

Hoje não tem texto no Contos de Gregório. Mas por um bom motivo! Agora sou colunista semanal do Blah Cultural. Novos ares para o Gregório, que mudará das sextas para os sábados.

"A questão é que há tempos que eu não parava para avaliar o quão fodida estava a minha vida. Eu me sentia sentado em um vagão de trem enquanto via a minha vida passar pela janela. E eu sempre tive consciência disso. Eu sempre observei a vida passar. Acontece que eu nunca pude fazer nada."

(Trecho do conto inédito "E Não Há Sensação Melhor Do Que Essa Sensação de Liberdade")


O conto estará disponível na íntegra a partir de amanhã no endereço www.blahcultural.com

Aproveite para ler os contos antigos. Eles ainda continuarão sendo publicados aqui.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

AQUELE NOSSO ROMANCE TINHA VARANDA, SUÍTE, GARAGEM PRIVATIVA E VISTA PARA O MAR, MAS COLOCAMOS NELE UMA PLACA DE ALUGA-SE

    O elevador estava quebrado. Somos tão engenhosos, mas ficamos na mão quando as nossas invenções resolvem parar de funcionar. É assim com elevadores, celulares e máquinas de refrigerante. O elevador quebrado não me deixou outra opção a não ser subir os sete andares de escada. Chegando ao fim estava sem fôlego. Acendi um cigarro, no corredor do prédio ainda, e bati no número 705. Na quarta batida ela abriu. Continuava bonita.
    “Não pode fumar aqui”
    “Mas eu sempre fumei”
    “Não pode mais. Entra”
    Entrei.
    “Dentro pode?”
    “Sim”
    Muitos abajures ligados ao mesmo tempo. Aquela luz ofuscou a minha vista, desacostumada por conta da escuridão do corredor. Sempre achei aquele prédio um edifício-fantasma. Ela apagou algumas lâmpadas. Estava morrendo de saudades daquele apartamento. Eu estava morrendo de saudades dela. Vestia uma camiseta branca do The Velvet Underground. Eu já não lembrava o motivo do nosso romance ter acabado. Não lembro se foi alguma merda que eu fiz ou se foi alguma merda que ela fez. Deve ter sido alguma merda feita pelos dois. A gente sempre fazia alguma merda. Por isso deu certo por tanto tempo. Aquela, provavelmente, estava sendo a última vez que eu pisaria naquele apartamento. Ela já havia feito a mala com as minhas roupas. As últimas roupas. As roupas que eu havia esquecido propositalmente, na esperança de um dia voltar. E deu certo. Eu estava de volta. Eu estava de volta ao apartamento que costumava ser meu. Mas era a última visita. Está aí um bom nome para um próximo conto: “A Última Visita”. Comovente.
    Nas paredes alguns quadros novos. Todos os meus já tinham ido embora da última vez. Aquele apartamento não se parecia mais com o de antigamente. O de antigamente era muito melhor. Acendi um cigarro. Ela me pediu um também. Fumamos enquanto tentávamos puxar assunto. Tão estranho. Dois seres humanos que viviam juntos, cagavam juntos, tomavam banho juntos, trepavam juntos, adoeciam juntos, agora com vergonha um do outro. É tudo muito estranho. Parecíamos desconhecidos. Eu era um intruso naquela sala. Aquela sala, que costumava ser o meu espaço, agora era um local misterioso. Transamos tanto naquela sala, mas agora não nos encostávamos. Nem mesmo podíamos dividir o mesmo cigarro, comum em outras épocas. Um cigarro para mim, outro para ela. Até o cinzeiro era separado. Cada um com o seu.
    “Então é isso”
    “Pois é”
    “E você, como está?”
    “Estou bem, obrigada”
    “Legal”
    “Continua escrevendo?”
    “É só o que faço”
    “Legal”
    “Posso usar o banheiro?”
    Fui ao banheiro. Conhecia o caminho. Precisava dar uma última mijada naquele lugar. Foram os três anos mais intensos da minha vida. A mulher que eu mais amei e odiei, ao mesmo tempo. A melhor companhia, os melhores tragos, as melhores bebedeiras. Os melhores momentos. Éramos felizes. Ela tinha uma renda fixa, mas baixa. Às vezes eu conseguia um mês recheado, às vezes nos sustentávamos apenas com o salário dela. Sempre tive empregos instáveis. Mas ela sempre entendeu. Porra, a gente se dava muito bem, o que fez a gente se separar? Eu não conseguia me lembrar. Comecei a lavar a mão na pia do banheiro. Confesso que nesse momento senti uma vontade enorme de chorar. Eu provavelmente nunca mais lavaria as mãos naquela pia. Conheceria outras pias, até melhores. Mas aquela pia, nunca mais. Acho que fiquei dois minutos lavando a mão. Voltei para a sala. Não estava mais chorando. Não quis mostrar fraqueza.
    “Então é isso”
    “Pois é”
    Peguei a mala. Tirei um cigarro do maço e o deixei ao lado de um abajur. Era o meu último presente para aquela mulher. E ela continuava bonita. Muito bonita. Olhei em seus olhos e lhe dei um forte abraço. Parti, com dor no coração. Com ele dentro da mala. E agora, o que fazer? O elevador continuava quebrado. Desci os sete andares de escada. Por incrível que pareça, a descida foi mais difícil.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

QUEM MINHA FAMÍLIA PENSA QUE ENGANA AO FALAR DE FELICIDADE?

    Você precisa ser feliz. É o que sempre disseram para você. É isso que dizem para todos, desde o início das nossas vidas, isso de que é preciso ser feliz. Sabe, você vê o tal do “felizes para sempre” no final da novela e realmente acredita que uma hora chegará o seu final feliz também. Somos tão ingênuos. Às vezes me sinto o único filho da puta que não procura pela felicidade. Sabe, não é por questão ideológica, eu apenas considero essa busca irreal, falsa e idiota. As pessoas estão enlouquecidas. Eu simplesmente não vejo a felicidade como algo essencial para a vida. Comer, dormir, cagar, essas sim são coisas essências. O resto é besteira.
    Estou rodeado por idiotas. Não consigo ficar em casa sossegado que logo sou atrapalhado por algum vizinho ouvindo música ou falando alto ou trepando com a empregada. Mas tudo bem, talvez essa seja a busca deles pela tal felicidade. Penso em Sócrates. Realmente, a sabedoria está limitada à própria ignorância. E às vezes o melhor é ser ignorante mesmo. Eu só queria poder aproveitar o momento em que fico em casa. Eu só queria fazer valer o dinheiro que pago de aluguel. Porra, é pedir muito? Quer saber? Talvez eu seja apenas mais um idiota rodeado por idiotas e ajudando a rodear outros idiotas. Um grande aglomerado de idiotas. Deve ser isso. Os idiotas também devem me considerar um idiota. Se todos nós fossemos apenas programas de computador tudo seria muito mais fácil - o nosso programador nos mandaria para a lixeira e pronto: problema resolvido. Mas isso não acontece, infelizmente. Está tudo uma grande merda. Por que não acabam com isso de uma vez? Deve ser tão simples acabar com a nossa vida, mas quem tem esse poder deve ser muito mais idiota do que todos nós juntos. Eu não pensaria duas vezes. Eu excluiria o meu vizinho, a empregada e até mesmo Sócrates.
    Eu busco ser sincero. O mundo seria outro se todos fossem sinceros. O que eu mais odeio é essa ausência de sinceridade e honestidade. No final, todos nós morreremos e deixaremos para a futura geração um legado de falsidade gigantesco. É isso: vamos morrer e seremos enterrados e vão mijar em cima das nossas lápides e vão construir um enorme arranha-céu. “Aqui jaz Gregório, um homem bom, mas que não encontrou a felicidade – e por isso construiremos um grande empreendimento nesse mesmo lugar!”. É tudo muito injusto. Não seremos convidados para a festa de lançamento do arranha-céu. É tudo muito triste. Mas a vida é desse jeito. Enquanto uns buscam pela felicidade, outros mijam sobre a terra e aprovam construções. Como não odiar o ser humano? Tudo o que há de mais podre, indecente e imoral está na humanidade. Talvez seja por isso que dizem que você precisa ser feliz. Mas não se engane. Na realidade, as pessoas não se importam com você.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

METAMORFOSEANDO KAFKA

Álvaro sempre foi o valentão da turma. Ninguém mexia com ele. Desde a terceira série batia em todos - e quando eu digo que batia em todos, era porque ele batia em todos mesmo. Não existia desafio para Álvaro. Sabe, ele era o mais forte do colégio, ninguém queria arrumar confusão. Uma vez, quando estávamos no ensino médio, deu um soco tão potente num metido a sabichão que a cabeça do garoto bateu com muita força na parede e todos nós ficamos com medo de que algo grave tivesse acontecido. Prendemos a respiração, atônitos, preocupados. Só começamos a rir quando nos certificamos que ele continuava vivo. Então a diretora enviou um bilhete para a mãe de Álvaro. Ela não se importou. Álvaro era o cara e por isso que gostávamos de ser seu amigo. Às vezes ele batia na gente também, mas era de brincadeira. Legal mesmo era ver como batia nos outros. Ninguém mexia com a gente.
Estava em casa assistindo TV e bebendo cerveja quando recebi um e-mail do editor do jornal que eu era colaborador. Ele me pediu um texto sobre a época da escola. Achei um porre. Ele sabia que o meu estilo era outro. Escrevia sobre o submundo, sobre as ruas, sobre o estar sempre na merda. Não lembrava de muitos detalhes da época escolar, algumas memórias o tempo fez questão de apagar, mas trabalho é trabalho e o jornal pagava em dia. E lá estava eu em casa em frente ao computador, bebendo cerveja e tentando trabalhar. Todos os meus textos começavam a ser escritos após quatro ou cinco latinhas de cerveja. Era a sétima latinha aberta, nenhuma palavra. Busquei inspiração em Kafka, mesmo a obra do autor não tendo nenhuma relação com o tema. Uma vez li em algum lugar que Gabriel García Márquez decidiu se tornar escritor após ler a primeira frase de A Metamorfose. Eu lia Kafka e García Márquez todo dia e nunca conseguia escrever algo que prestasse. Mas seguia tentando. É esse o sentido da vida: seguir tentando. Eu seguia. Meus olhos perseguiam as palavras de Kafka, mas nada parecia despertar o meu lampejo criativo. Eu precisava iniciar aquele texto de forma genial. Eu precisava garantir o meu aluguel. Seguia tentando.
Pela janela, subitamente, um inseto entra na sala e paira em volta da lâmpada. Tomo um susto. Dou um pulo da cadeira e não tiro os olhos do inseto. Ele parece perceber, se debate, encontra um lugar para pousar. Busco algo para jogar nele, mas só tenho latas de cerveja vazias ao meu alcance. O desodorante spray é o objeto mais próximo. Aperto o botão e encharco o inseto completamente. Ele não se mexe. Não sei muito bem o que fazer. Mantenho a calma, é só um inseto. É só um mísero e insignificante inseto estragando a minha noite. Busquei valentia. Arremessei uma almofada contra ele. Voou para o outro lado da sala. Pousou sobre o toca discos.
"Vou rir muito dessa história quando contar para o pessoal mais tarde"
Fiquei uns cinco minutos parado, esperando que algo acontecesse. Não pensei em nada nesses cinco minutos. Imagino ter sido cinco minutos, porque pareceu durar quatro horas e meia. Eu permaneci imóvel durante esse tempo, assim como o inseto. Não aconteceu nada. Busquei um chinelo no quarto e quando voltei não o encontrei. Entrei em desespero. Eu o havia perdido. Agora ele poderia estar em qualquer lugar. Estava escondido, certamente me atacaria quando eu menos esperasse. Já imaginava as suas asas roçando meus pés enquanto eu dormia e o susto que eu levaria ao acordar e ver aquele enorme bicho subindo pela cama. Suas patas afundando no colchão e sua pelugem me aquecendo. Seu bafo de inseto e suas antenas invadindo meu corpo e eu gritando e chamando por socorro.
Na rua o vento produzia ruídos e trazia o outono com suas chuvas típicas. Abri todas as janelas da casa, na esperança de libertar o meu prisioneiro. Sem sombra de dúvidas, eu não o queria ali. Reparei em cada detalhe da minha sala e para a minha surpresa, haviam espaços nunca antes analisados. Havia um espaço logo acima da estante de vidro, onde ficavam alguns livros que eu nunca vira anteriormente. Na parede uma mancha de café. O ventilador de teto também, cor de mogno, com detalhes em dourado. Os fios soltos entre o ventilador e o teto. Cansei e busquei uma dose de uísque na cozinha. Enquanto enchia o copo pensava no quão medroso eu estava sendo. Era apenas um inseto. Eu não estava em um conto de Kafka, me transformando no próprio inseto. Era uma situação comum, apenas um simples inseto entrando no apartamento de um humano que mora na cidade grande. Um mísero e insignificante inseto. Ao voltar para a sala dei de cara com ele. Pousou na parede oposta a janela. Era o momento que todos aguardavam. Apenas eu e ele. Eu, a minha dose de uísque e ele. Bebi dois goles. Ele permanecia imóvel. Coloquei o copo sobre a mesa. Caminhei em direção ao inseto. Suei. Pensei algumas vezes no que poderia resultar desse encontro. Mas a coragem havia tomado conta de mim. Eu já estava muito próximo a ele. Não havia outra opção. Estávamos quase grudados. Sem hesitar, dei um soco na parede. Peguei-o em cheio, assim como Álvaro fez com o nosso antigo colega. Diferente daquela vez, o meu alvo estava morto. A parede ficou suja de uma gosma marrom e vermelha. A minha mão estava pior. Mas eu não. Eu estava bem. Eu estava muito bem. Eu era o valentão do pedaço. Eu era o Álvaro da escola. Eu era Franz Kafka da literatura. Eu era demais. Ninguém mexeria comigo.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

NOITE DEPRIMENTE POR R$2,90

Terminal de ônibus me deprime. Todas aquelas pessoas querendo voltar para suas casas e conseguindo e você lá esperando. Esperar me deprime. Pessoas me deprimem. E cada uma dessas pessoas com suas histórias e frenéticas e apressadas. Aquela luz branca que te deprime e aquele chão extremamente limpo porque em uma placa diz que é proibido fumar. Pensei em acender um cigarro e ver a reação dos outros. Talvez mudasse o ambiente, tiraria aquele clima de enterro que havia se instalado. Desisti da ideia. Estava deprimido demais para fumar um cigarro e para desrespeitar a lei. Eu realmente estava deprimido para caralho. Meu ônibus não chegava. Reparei num rapaz gordo que lia um livro que não consegui identificar. Pelo menos ele estava se distraindo. A minha única distração era o chão limpo. Tanta coisa boa acontecendo no mundo e tanta coisa boa para pensar e eu lá sem fazer nada de bom e sem pensar em nada que prestasse. Deprimente. Vi um conhecido que subiu tão rápido no ônibus que não tive certeza se era mesmo um conhecido. Ver todos entrando em seus ônibus me deprimia. Talvez eu devesse me acostumar com a ideia de ficar no terminal de ônibus para sempre. E quando alguém me perguntasse qual era o ônibus que iria para o morro eu responderia e indicaria a sua hora exata de saída. Meu ônibus não chegava e minha vontade de fumar aumentava. Pessoas se suicidam por muito menos. Se eu me jogasse na frente de um ônibus não faria tanta diferença. Talvez o rapaz gordo largasse a merda do livro e me desse um pouco de atenção. Talvez alguém ficasse nervoso e fumasse um cigarro. Talvez o meu ônibus chegasse e eu lá jogado e estirado e sangrando. Em pensar que eu estava pagando por isso. O rapaz gordo guardou o livro quando o nosso ônibus chegou. Que alívio! Mas, por razões desconhecidas, a minha depressão voltou. Não quis ir embora. Talvez fosse melhor permanecer no terminal. Eu estava saindo de um pequeno mundo repleto de possibilidades para voltar para casa, um pequeno mundo já explorado e esgotado. E na geladeira eu só tinha uma caixa de leite, uma margarina barata e uma panela com feijão estragado. O quão deprimente isso é?

sexta-feira, 24 de maio de 2013

FODENDO COM SARA

      Trepando com uma e pensando na outra. Sexo é ritualístico. Fechamos os olhos e procuramos ter prazer com aquilo que imaginamos. Eu imaginava outra. Eu pensava em outra. Era inevitável. Depois de dar uma bem dada, deitamos lado a lado, com o ventilador de teto no máximo da velocidade. Ela falava de Maiakovski. Menos literatura, mais putaria, por favor. Essa sempre foi a minha máxima. Eu era cheio de conceitos.
      “Você é uma delícia, sabia?”
      “Sabia”
      “Qual é o seu nome mesmo?”
      “Sara”
       Então acendi um cigarro. Provavelmente algo que Maiakovski faria. Sara reclamou. Pediu para que eu parasse de fumar. Talvez segunda-feira. Há três meses que tento parar de fumar na segunda-feira. Ainda era quinta. Ela então beijou meu pescoço, passou a mão no meu mamilo e perguntou manhosa:
       “Vamos meter de novo?”
       Olhei para o meu pau, cansado, quase esbaforido. Eu estava bêbado para caralho e estava há dois dias sem dormir.
      “Podemos esperar um pouco? Vinte minutos”
      “Está bem”
      Senti Sara decepcionada. Mais decepção, menos Maiakvoski. Nada contra. Em geral, gostava dos russos. Dostoievski, Gogol, Tolstoi, Gorki e tantos outros que me deixavam de pau duro. Mas não estávamos em um momento de reflexão. Provavelmente algo que Maiakovski faria, esse lance de parar e refletir. Ou ele meteria um tiro na própria cabeça.
       Então Sara trouxe cerveja gelada para nós dois. Eu ainda olhava para o meu pau. Pensei na outra e imaginei o que ela deveria estar fazendo. Talvez ouvindo aquelas bandas nacionais que só ela ouvia. Ou então estava se depilando enquanto o marido fazia as malas para viajar. E o marido nem desconfiava que a mulher saia com um escritor pouco sucedido. O escritor era eu. Ou sou eu. Não soube como conjugar, então, na dúvida, vai das duas formas. O importante é o entendimento - e olha, até eu custei a entender o que a fez querer trepar comigo.
      Eu e Sara voltamos ao sexo. Continuei pensando na outra. Imaginava apertar a sua bunda, bater em sua cara e sentir a sua respiração. Eu realmente não estava em sintonia com Sara, mas fazia o meu papel. Sara era realmente uma delícia. E a filha da puta sabia disso.
       "Tá gostando?"
       "Tô"
       Pergunta idiota. Ela não responderia o contrário. Enquanto isso, do outro lado da cidade, o marido já se despedia da esposa. Ele ficaria duas semanas fora. Viagem a negócios. Casa livre para Gregório. Eu conhecia cada canto daquele outro quarto. A parede laranja com um quadro do Pulp Fiction. A televisão sobre a estante pequena, sempre passando algum filme. Chaplin era o preferido. A janela de vidro que me fazia lembrar das histórias que ouvia quando criança. A cama arrumada.
      Continuava fodendo com Sara. Fui cansando. Tentava pensar na outra, para animar a trepada, mas eu realmente fui cansando. Então desistimos. Sara chateada - e até mesmo preocupada comigo. Olhava como quem quisesse dizer "meu bem, calma, isso acontece com todos os caras, esse lance de brochar é normal". Eu não estava nem aí. Acho que ela percebeu e ficou ainda mais aborrecida. O que eu poderia fazer? Ela ainda tentou me pagar um boquete, mas realmente não estava em condições.
      "Desculpa, hoje não vai dar mesmo. Você pode até não aceitar, mas eu tô morto de cansaço, sa'como'é?"
      "Relaxa, Gregório. Não aceito, mas tem uma frase que diz que amar não é aceitar tudo, e que onde tudo é aceito é porque há falta de amor"
       "De quem?"
       "Maiakovski"
       "Tenho uma outra ótima: coma muito cu e tenha orgasmos múltiplos "
       "É sua?"
       "Não. Provavelmente é Maiakovski também. Algo que ele falaria bebendo vodka com os bolcheviques" 
       Sara ficou brava. Nos despedimos e eu fui embora. Chovia naquele fim de tarde. Lavavam a rua. Era dia de feira livre. Os feirantes já tinham ido embora, agora era a vez do pessoal da prefeitura limpar tudo. Toda aquela gente lavando a rua e pegando chuva enquanto muita gente trepava pela cidade. A vida pareceu ter mais sentido para mim.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

COMO ESSA PODE SER A MELHOR ÁGUA DO MUNDO?

Noite agradável no centro de São Paulo. Muita gente aglomerada e tudo acontecendo junto e ao mesmo tempo. Estava no meio de um show de jazz na Virada Cultural de São Paulo com um casal de amigos. O relógio marcava uma hora da manhã. Não me importava com o horário. Eu era foda. Eu era Gregório.
"Gregório, trouxe?"
"Trouxe"
"Ok"
O contrabaixo ditava a nossa pulsação. O saxofonista então começou um solo que fez a gente enlouquecer. O céu estava nublado, mas não parecia que viria chuva. Clima agradável. Nem frio nem calor. Tudo certo. Tudo ok. Eu estava no meio de um show de jazz na Virada Cultural de São Paulo. Eu era foda. Eu era Gregório.
O tempo passou. Não sabia mais se estava no meio de um show de jazz na Virada Cultural de São Paulo. Eu estava sendo carregado. Eu continuava sendo Gregório, disso eu tinha certeza. Pensei: “me tirem daqui, só isso que quero”. Eles estavam me tirando de lá, como se lessem meus pensamentos. Provavelmente eu falei em voz alta. Todo o trajeto me pareceu uma longa trilha ousada e perigosa. Nós já não estávamos no meio de um show de jazz. Ouvi sons estranhos dentro da minha cabeça. Não eram contrabaixos e nem saxofones. Entramos em uma padaria para comer. Eu precisava comer. Comecei a associar as coisas. Talvez. Acho que estava consciente. Acho que o relógio marcava uma hora da manhã ainda. Eu estava com sede. Eu sabia que estava na Virada Cultural de São Paulo. Quis falar algo, mas faltou coragem. O atendente me olhou como se xingasse mentalmente toda a minha família e toda a minha futura família e toda a família que eu nunca terei. Quis falar com ele, mas faltou coragem. Deram-me um misto quente. Dei uma mordida e quis agradecer, mas não consegui. Talvez tenha faltado coragem.
“Você 'tá melhor?”
Pensei lá na minha cabeça: “porra, estamos perdendo o maior show de todos!”. O quão fodido eu parecia estar? Não respondi se estava melhor ou não. Faltou coragem.
“Bebe essa água, é a melhor água do mundo”
Meu amigo estendeu o braço e me passou uma garrafa de água mineral. Desdenhei. Pensei lá na minha cabeça mais uma vez: "como essa pode ser a melhor água do mundo?". Se existisse uma melhor água do mundo, certamente não estaria naquela padaria. Dei um gole. Então algo realmente surpreendente aconteceu: eu já não estava numa padaria perto de um show de jazz na Virada Cultural de São Paulo. Eu estava no meio de uma imensa queda d’água, num lugar totalmente desconhecido, um céu azul, montanhas ao fundo e eu com os braços abertos e a boca aberta e o coração aberto para toda aquela água que caía bem em cima de mim e a água correndo pelo meu corpo e massageando meus músculos e o meu estado de relaxamento sendo tão grande, mas tão grande, que eu poderia até gritar - afinal, estava sozinho e relaxado o suficiente e o grito provavelmente ecoaria e a água bateria no chão e o barulho me acalmaria e eu teria certeza de que toda aquela sensação seria eterna. UAU!
De volta à padaria, o gole descia pela garganta. Sorri. Quebrei o meu próprio silêncio e concordei:
“Melhor água do mundo”
Foi o meu maior ato de coragem.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

EU ESTAVA COM ADRIANA



     Sentado numa mesa de bar e esperando por Adriana. Ela não chegava. Ela não chegaria. Eu ainda não sabia disso. Continuava na mesa de bar esperando por Adriana. É tão desesperador ficar sozinho no bar quando se está esperando por alguém e então essa pessoa não chega e você fica com aquela imensa cara de bosta. Parece aqueles sonhos em que você está nu diante de uma multidão. O olhar fica perdido e as mãos pedem por bebida ou cigarro. E quando a bebida e o cigarro acabam fica aquele constrangimento - aquela mão sem função, mão envergonhada, mão sem graça. Adriana não chegava.
     Quando conheci Adriana, ela trabalhava como fotógrafa em um grande jornal da cidade. Trabalhar em jornal já não dava tanto dinheiro naquela época. Eu lhe mostrava pequenos contos, na esperança de que fossem publicados algum dia, mas nunca tive sorte. O responsável por selecionar os contos que eram publicados no jornal me enviava mensagens de motivação e dizia que um dia eu conseguiria e que seguisse tentando. Adriana já era conhecida por beber tequila sem fazer careta e por ter lido toda a obra de Tchecov. A tequila me interessava.
     Na televisão uma luta de MMA. Nunca entendi o interesse das pessoas por isso. Urravam nas mesas e torciam fervorosamente. É sério que as pessoas saiam das suas casas para assistir dois homens lutando na televisão? Não faz o menor sentido. Enquanto buscava entender MMA, tentava ligar para Adriana. Sem sucesso. Ela não chegava. Ela não chegaria. Eu ainda não sabia disso. Então comecei a ligar para outros contatos da minha agenda telefônica. Diversas reações. Algumas não responderam, outras - poucas - me disseram que tudo bem, me esperariam para sair, tomar alguma coisa, jogar conversa fora, já outras foram diretas:
     "Porra, Gregório. Bebeu?"
     Eu estava bebendo mesmo. Estava bebendo numa mesa de bar e esperando por Adriana. Ela não chegava e não chegaria, mas vocês já sabem, eu não sabia disso ainda. Eu estava me sentindo só e quanto mais buscava me conectar às pessoas, mais depressivo ficava. Então pedi tequila ao garçom.
     "Meu amigo, quem são esses dois lutando?"
     "Jon Jones e Sonnen"
     "Legal"
     Eu gostava de Adriana. Não havia como não gostar dela. Ela tinha o sorriso mais bonito que eu conhecia. E eu conhecia muitos sorrisos. Adriana era especial. Porra, Adriana era a mulher da minha vida e por isso estava sentado numa mesa de bar esperando por ela. Não esperaria outra pessoa que não fosse ela. Ainda havia esperança. Sempre há esperança no mundo. Os Estados Unidos da América só não explodiram essa merda toda ainda porque possuem a esperança de que todo o mundo se curvará e lamberá as bolas do Tio Sam mais cedo ou mais tarde. É a esperança que nos mantém vivos. E talvez nem seja tão ruim assim lamber as bolas do Tio Sam.
     Virei a tequila.
     Comecei a reparar na árvore que estava do outro lado da rua. Eu era fascinado por árvores. Em momentos de solidão são as únicas companheiras fieis. Eu conhecia várias árvores ao redor do país. Elas ficam lá, paradas, enraizadas, lindas, com suas cabeleiras enormes e hipnotizantes. Elas dão oxigênio para a humanidade. Então alguns imbecis mijam nelas e jogam lixo e as desprezam. Porra, elas exalam vida sem receber nada em troca. Por que ninguém urra e torce por elas? Eu possuía muitas companheiras. Cada uma com o seu nome. Júlia, Mariana, Samantha, Elisabete, Érika, Vanessa, Natália e Maria. As minhas oito amantes.
     "Quer fazer mais algum pedido?"
     "Não, obrigado"
     O garçom quase indo embora, quando o chamo:
     "Pensando bem, quero sim! Qual é o nome dela?"
     Apontei para a árvore. Linda. Cabeleira imensa. O garçom não entendeu.
     "Ela quem?"
     "Ela. Não está vendo? A da cabeleira"
     "A árvore?"
     "Achei que já tivesse um nome"
     Ele riu. Perguntou quem eu era.
     "Sou um escritor"
     "É mesmo? E qual é o seu nome?"
     "Carlos Drummond"
     "Bom... não quer mais nada?"
     "Traz a conta"
     Esperava Adriana, mas já não havia esperança. Honestamente, torcia para que ela não viesse mais. O tal Jon Jones ganhava a luta na televisão. As pessoas aplaudiam. Eu realmente nunca entenderia. Paguei a conta, acendi um cigarro e fui até a minha nova companheira. Respirei um pouco do seu oxigênio e encostei a palma da mão em seu caule. Estava úmida. Senti calor. Era uma energia sobrenatural. Lembrei da energia de Adriana.
     "A partir de agora você se chamará Adriana. Qualquer hora eu volto e sei que estará me esperando"
     Era bom estar com Adriana.
     "Antes que eu me esqueça: sou Carlos Drummond de Andrade"
     Eu não estava sozinho. Eu estava com Adriana. Fui embora.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

AQUELA MULHER


Estava foda viver. Eu tinha acabado de ser despejado e não tinha para onde ir. Um casal de amigos me ofereceu a casa deles por um tempo, até as coisas voltarem ao normal. Aceitei. Sentia vergonha. Sou ser humano, é normal sentir vergonha. Sou menos homem por isso? Fiquei num quarto minúsculo, com todos os meus pertences empacotados num canto. Tudo o que eu consegui juntar na vida estava naquele quarto. Estava foda viver e por isso eu pensava em suicídio. Todo mundo vai morrer um dia. Talvez aquele fosse o meu momento. Que fodidos que somos, não é mesmo? A gente perde tempo com tanta coisa. Eu sempre perdi o meu com cigarros. Eu precisava de alguma outra coisa. Cigarro desgraça a vida. Eu estava sem casa. Todos tinham uma casa. Até os ratos possuíam casa. Eu estava me sentindo tão pequeno quanto o meu novo quarto. Todo mundo já pensou em morrer. Eu pensava nisso a todo momento. Sempre ficava deprimido demais para me matar, mas agora era sério. Eu costumava acordar aos domingos para fazer um sanduíche de mortadela e ligar para alguma prostituta. Pedia para trazer cinco garrafas de bohemia, um marlboro vermelho e aquela revista que eu odiava. Elas sempre traziam e enquanto fodia pensava que todo mundo iria morrer um dia. Agora eu não tinha mais bohemia, prostituta e nem casa. Mas continuava pensando que todo mundo morreria um dia. Morrer era a melhor opção.
Comecei a ouvir uma banda de Cuiabá que eu gostava e fui para a janela fumar. Fazia uma semana que eu finalmente conseguia parar de fumar, mas estava muito foda viver. Tem dias que a vida é um ato de coragem. Esse Hélio Flanders entendia a minha dor. Minha mãe me ligou. Eu não contei o que estava acontecendo. Não queria que ela se preocupasse. Eu nunca quis que ela se preocupasse. Deve ser por isso que saí de casa aos quinze anos. Na escola eu chorava e implorava para a coordenadora não contar para a minha mãe que eu havia feito alguma merda. Não me importava em cair e bater a cabeça e sangrar, desde que a minha mãe não soubesse. Agi naturalmente ao telefone. Ela nem percebeu. A gente se despediu como se tudo estivesse bem. Não estava. O cigarro me relaxava. Ainda estava foda viver.
Uma mulher se escorou na janela da casa vizinha. Não consegui ver seu rosto. Encarei-a e acho que ela fez o mesmo. Ela não fazia ideia de como estava a minha vida. Ela não fazia ideia de como era foda viver. Grande merda! Eu também não fazia ideia de como estava a vida dela. Talvez estivesse pior. Talvez estivesse foda para ela também. Chovia fraco. Eu não tinha mais casa. Eu só tinha um cigarro, a poesia daquelas músicas que me embalavam nos  momentos depressivos e aquela mulher na janela. Pensei em acenar, mas achei estúpido demais. Pensei em chorar. Era muito idiota fumar aquele cigarro e olhar para aquela mulher na janela. Tão desconhecida, tão aprisionada em seu próprio mundo, assim como eu estava aprisionado ao meu. Estávamos próximos, mas distantes. Caio Fernando Abreu com certeza escreveria algo muito interessante sobre isso. Eu não leria, sem dúvida. Será que a mulher da janela gostava de Caio Fernando Abreu? E arde mais que brasa em pele quente você olhando pra mim.
Eu queria morrer. Tive medo. A chuva ficou mais forte. Eu não tinha coragem. Eu não conseguiria morrer. De novo. Eu sempre fui muito medroso. Eu penso demais e isso sempre me coloca acima das emoções. A mulher ainda estava lá. Parada. O que estaria pensando? Comecei a me sentir desconfortável com a sua presença. Pensei na minha mãe e nos meus amigos. Estava foda viver mas concluí que valia a pena. Sou mais homem por isso? Fumei o último cigarro e fui dormir com a certeza de que aquela mulher ainda estava na janela.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

LETÍCIA


Letícia me cutucou quando percebeu que eu estava quase dormindo. Estávamos assistindo alguma porcaria na televisão. Vinha sofrendo com dores de cabeça a noite inteira. Era um daqueles dias em que não estávamos embriagado. Senti tontura. Era como se um caminhão tivesse passado por cima do meu corpo e o caminhoneiro me xingado pelo retrovisor. Filho da puta! Consegui me rastejar até o banheiro e vomitei. Eu realmente estava com alguma merda. Eu morava com Letícia em um apartamento perto do centro da cidade.
“Meu bem, algo errado?”
“Me leva para o hospital”
Então eu apaguei. Lembro de descer pelo elevador carregado por Letícia, de entrar no carro e de esperar uma eternidade para ser atendido no hospital. Senti fraqueza e segurei o vômito. Se tem algo nessa vida que eu sou bom, mas bom mesmo, é nesse lance de segurar vômito. Letícia pareceu tranquila. Então chamaram o meu número e caminhamos até a sala da médica. Um cubículo branco com apenas uma mesa e duas cadeiras. Letícia ficou de pé respondendo as perguntas. Encaminharam-nos para a sala de coleta de sangue.
Aos poucos a dor de cabeça voltava. Não quis olhar para a enfermeira enfiando a agulha no meu braço e tirando parte do meu sangue, que seguiu imediatamente para análise. Ela aproveitou o mesmo furo para me colocar no soro. Um pacote de meio litro de soro. Pediu para que eu fosse para outra sala. Uma sala cheia de pessoas com as veias furadas e pacotes de soro. Cada pessoa com o seu pacote de meio litro. Era a sala do soro. Preferia as porcarias que assistíamos na televisão. Eu e Letícia nos sentimos acuados. Éramos os novatos da sala. Todos olhando e querendo saber o que de errado eu tinha.
"O que será que você tem de errado?"
"Porra, Letícia! Estava pensando justamente nisso"
Falávamos baixo para não sermos ouvidos. Sem dúvida, era uma das situações mais constrangedoras da minha vida. A sala do soro era apavorante. Os outros conversavam e sorriam e se divertiam e eu e Letícia ficávamos feito dois imbecis tentando entrar nas conversas. Ninguém nos dava atenção. Desistimos e ficamos contando as gotas caindo e imaginando como o soro entrava nas veias e se misturava ao sangue. Ouvi de um rapaz barbudo de óculos que o Seu Antônio, um idoso de boina azul que estava ao lado da porta, já estava indo para o terceiro litro. Não acreditei. A enfermeira chamou meu nome:
"Gregório"
Letícia respondeu por mim. Eu não estava em condições de levantar sequer o dedo. O médico queria falar comigo. Ninguém prestou atenção quando saímos da sala do soro. Eu também não gostava deles. Fomos então encontrar o médico. Na sala havia uma maca ao fundo, uma mesa com cadeiras e vários aparelhos. Convidou-nos a sentar. Eu e Letícia obedecemos.
"Gregório, o seu caso é grave"
"É mesmo?"
"Vamos precisar operar"
"Operar? Mas como? Agora?"
"Sim, senhor"
"Mas o que aconteceu com ele?"
"A senhora é a esposa?"
"Sou"
" Precisamos fazer uma cirurgia para salvar a vida dele"
"Mas..."
E apaguei novamente. Quando acordei, estava numa outra sala do hospital, com uma roupa que não era a minha e com Letícia chorando na janela. Fumava um Lucky Strike. Não sabia que deixavam as pessoas fumarem no hospital. Entendi que estava prestes a entrar na sala de cirurgia. Era isso. Não tinha outra saída.
"Meu amor"
"Gregório"
"O que eu tenho de errado?"
"Você vai morrer, Gregório. Você vai morrer. E eu não vou suportar"
"Não fala isso. O que está acontecendo? Me explica, por favor"
"Meu amor!"
Letícia soluçava e chorava. Eu também comecei a chorar. Chorava por Letícia, não por mim. Não me importava morrer ou viver. Eu estava preocupado com Letícia. O que me importava era Letícia. Lembrei de cada momento que passei ao lado daquela mulher. Lembrei de cada momento que passei ao lado da mulher da minha vida. Lembrei dos nossos porres no bar da esquina e o caminho de volta para casa sem muito sentido de direção. Lembrei do sorriso que surgia em seu rosto ao acordar e perceber que eu estava com todo o cobertor para mim. Lembrei dos nossos dias fodidos sem um trocado no bolso. Lembrei de quando roubamos legumes na feira para ter o que comer no almoço. Lembrei do dia que a conquistei com esse meu papo furado de escritor boêmio que apenas observa a vida passar diante dos olhos. Lembrei do sexo que era maravilhoso. Lembrei do quanto admirava Letícia. Lembrei do quanto a respeitava. Lembrei dos dias em que éramos pegos desprevenidos pela chuva e de como corríamos procurando um lugar coberto. Lembrei das teorias que ela tinha para cada filme do Stanley Kubrick e de como eu ficava fascinado e me perguntava onde ela havia aprendido tudo aquilo. Lembrei da marca de cerveja preferida dela. Lembrei dos seus vestidos. Lembrei de quando fomos ao enterro da sua tia. Lembrei de como ela tentava me ensinar Alemão e de como ela ria do meu sotaque forçado. Lembrei da risada de Letícia. Lembrei de como éramos uma dupla imbatível no truco. Lembrei de cada detalhe de Letícia. Lembrei de cada momento.
Então apaguei.
Acordei em casa, suado e aflito por causa do pesadelo que acabara de ter. Era tudo um sonho. O soro, o hospital, a cirurgia e Letícia. Nunca existiu uma Letícia em minha vida. Eu morava sozinho em um apartamento perto do centro da cidade. Eu não tinha uma mulher. Desesperadamente, tentei dormir e voltar ao sonho. Preferia estar a beira da morte do que perder Letícia. Não consegui voltar àquele quarto de hospital. Durante um ano eu tentaria sonhar com Letícia mais uma vez, buscando um último abraço. Mas Letícia nunca mais apareceria. Eu estava morto.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

FOI NUM ROLÊ NA RUA AUGUSTA QUE PERDI A ESPERANÇA NO SER HUMANO


Eu estava sozinho no bar. Outras pessoas estavam acompanhadas em outras mesas, mas eu não conhecia nenhuma delas. Eu estava sozinho. Às vezes gosto de estar sozinho no bar, sem precisar ficar criando assunto e falando merda. O que os outros têm a dizer quase sempre não faz sentido para mim. É tudo um monte de besteira. Eu agradeceria se o mundo parasse de falar comigo. Pouco me importa se a pessoa já fumou maconha com o Bob Dylan ou se já comeu o David Bowie. Eu realmente não me importo. A vida não pode se resumir a fazer coisas loucas para ter assunto. Não é esse o mundo em que eu quero viver. Por isso eu estava sozinho no bar. Nada me interessava. Fazia frio. Estávamos em julho e fazia muito frio naquela cidade. Caos urbano com seus ruídos e seus muros grafitados. Era o lado B da cidade. Buzinas, puteiros, garrafas de cerveja quebrando no fundo dos bares e muita vida acontecendo. Semáforos. Borrões multicores. Vermelho, amarelo e verde. Que viagem! Comecei a escrever num bloco de notas que eu levava no bolso. Um colega passou na rua e me cumprimentou de longe. Acho que eu estava com cara de poucos amigos, porque ele se afastou rapidamente. Borrão vermelho para os carros. Você percebe que a cidade está fria quando o brilho do semáforo não te emociona mais. Eu costumava me emocionar. Eu estava tão nostálgico. Mas a cidade já não era a mesma. Antigamente eu me emocionava. Agora, bebo sozinho. Acho que perdi a esperança no ser humano.
“Tem Dreher?”
“Tem sim, senhor”
“Desce um então”
O porquê de ter falado “desce um” era um mistério, afinal, eu odiava essa expressão. O garçom correu para dentro da espelunca providenciar a minha bebida. Gostava daquele lugar. Olhei para o bloco de notas e li as frases que nele estavam: “foi num rolê na Rua Augusta que perdi a esperança no ser humano”, “e se o mundo fosse um filme do Tarantino estrelado por mim?” e “acho que estou acabando com a minha vida, mas tudo bem, quem se importa, etc e tal”. Eram títulos de contos que provavelmente nunca seriam escritos. Às vezes um escritor só possui o título, mas nunca o conto em si. Às vezes nem isso. Se eu não fosse escritor eu provavelmente seria um sucesso. Minha mãe sempre me dizia que o mundo era difícil, mas eu era imbecil demais para acreditar. Eu estava sozinho no bar tentando ser genial. Inocente.
"O Dreher, senhor"
Vi um borrão amarelo enquanto bebia um gole. Sem chance, a emoção não voltaria. Não se fazem mais semáforos como antigamente. Talvez eu devesse largar tudo. Se eu fingisse ser louco não causaria tantos problemas. Certamente seria internado e receberia tratamento gratuito do governo. Que merda eu fui fazer da minha vida? Eu poderia estar trabalhando no Terraço Itália, apenas repetindo a frase decorada “boa noite, senhor, seja bem vindo, quer conferir o menu? Estou aqui para serví-lo, monsier”. Talvez eu tivesse que fazer a barba. Tudo pelo ofício! Mas que merda, eu não serviria para isso. Bom mesmo era tentar se emocionar com o brilho do semáforo e beber sozinho. Assim eu era feliz. Existia amor em SP.
Pensei em ir para a Praça Roosevelt e procurar por Mário Bortolotto para que ele lesse um dos meus contos, sei lá, para ver se eu levava jeito e se poderia continuar na área, mas eu provavelmente ouviria um “vai se foder, cara, ficarei feliz de não encontrá-lo nos próximos 256 anos”. Então eu daria um soco bem no meio da testa dele. Ou talvez ele tomaria um Dreher comigo e ficaríamos em paz. Nunca se sabe. O Bortolotto deve ser um cara legal e eu adoraria ouvir ele dizendo que já fumou maconha com Bob Dylan ou que já comeu o David Bowie. Talvez o brilho do semáforo da Roosevelt fosse mais emocionante. Mas não fui para a Roosevelt. Eu continuava sozinho. Como eu adorava estar sozinho. Sentia tesão mesmo.
“Tem cigarro?”
“Tem sim, senhor”
“Marlboro?
“Sim, senhor”
“Desce um então”
Cigarro aceso. O borrão verde e amarelo e vermelho começou a se misturar com a iluminação da rua. Era um mix de semáforo com carros e motos e puteiros. A calçada suja, típica daquele submundo em que eu estava. O cheiro de vômito. Quanta emoção. Era quase um orgasmo. Que merda não conseguir escrever sobre aquilo. A vista embaçada. Então vi Mário Bortolotto atravessando a rua. Borrão verde para os carros. Perigo! Ele correu para chegar ao outro lado e não ser atropelado. Segundos de suspense. Conseguiu. Que cara ousado! Voltei a ter esperança no ser humano naquele momento. Ninguém se importava. Mas se o mundo fosse um filme do Tarantino estrelado por mim se importariam. Do contrário, levariam um tiro na cabeça. O semáforo me emocionou. O que mudou? O brilho do semáforo ou o que passei a ver graças a luz emitida por ele? Mandei descer outro Dreher.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

AQUELE DÁLMATA ERA EXTREMAMENTE SURREALISTA


Estava cansado de tudo. Sempre estou desse jeito, mas naquela terça-feira eu estava me superando. Entrei no primeiro ônibus que passou e fui parar no centro da cidade. Andei por ruas desconhecidas até encontrar um bar interessante com algumas mesas na calçada e sinuca. O lugar tinha um cheiro insuportável de mijo, mas a cerveja estava muito gelada, então resolvi ficar por ali mesmo. Algumas prostitutas estavam à disposição num canto e no som tocava Reginaldo Rossi. Clima agradável. Eu estava curtindo. Já eram onze e meia da noite quando eu pedi a terceira garrafa de cerveja. Era bom beber sozinho, sem ninguém para encher o saco. Às vezes é só isso que você precisa: ninguém para encher o saco.
“Senhor, aquela moça pagou um conhaque para você”
“Está bem, pode trazer”
A moça acenou e sorriu. Não retribuí. Eu queria ficar sozinho. Por que era tão difícil de entenderem? Alguns minutos, meio conhaque depois e ela veio em minha direção. Sentou-se ao meu lado. Ficamos em silêncio durante algum tempo. Esperei que ela puxasse assunto.
“Que dia feio”
“Pois é”
“Você é de onde?”
“Da cidade”
“De que parte?”
“Do outro lado”
“Entendi”
“Pois é”
“O que você faz da vida?”
“Sou escritor”
“Escreve o quê?”
“Poesias, contos, romances”
“Legal. Quais os temas?”
“Falo sobre mim”
“E as pessoas se interessam?”
“Não me importo. Escrevo sobre mim porque sou o que eu sei de melhor”
“Entendi”
“Pois é”
Eu estava achando a conversa tão chata que acabei virando o resto do conhaque de uma só vez. Desceu queimando a garganta e por um instante senti todo o percurso interno. Depois de quanto tempo a bebida chega ao fígado? Enquanto mantinha a dúvida na cabeça, observei a minha companheira de mesa. Era bonita, tinha um rosto gordo e olhos verdes. Belo par de seios gordos. Mas não era gorda.
“Você é prostituta?”
Ela riu. Eu não achei a menor graça.
“Você acha que se eu fosse prostituta pagaria um conhaque para você?”
“Talvez”
“Não sou. Eu sou artista plástica”
“Legal”
“Não quer mais uma cerveja?”
“Estou quebrado”
“Eu pago”
“Tudo bem”
Ela pediu mais uma garrafa e um copo para ela. Comecei a gostar dela, mas não demonstrei interesse. Aprendi com o tempo que não se deve demonstrar interesse pelas pessoas. Truques que a vida ensina. Eu já me decepcionei demais. Bebemos e conversamos sobre política e MPB, não ao mesmo tempo. O papo começou a ficar bom. Bebemos mais duas garrafas e pedimos a conta. Ela pagou tudo. Quando percebi, estava indo para a casa dela. Não lembro o caminho que fizemos. Subimos três lances de escada para chegar ao apartamento e eu pensei que não conseguiria e já estava quase desistindo, mas quando vi já estava dentro do apartamento da artista plástica com um dálmata lambendo a minha mão e todos aqueles quadros na parede. O quão bêbado eu estava?
“Quem são?”
“Esse é Miró. Aquele é Cézanne. Perto do banheiro é Dalí. E ao lado da porta da cozinha são vários do Picasso”
“Esses caras são fodidos”
Eram fodidos mesmos. Achei tudo muito interessante. Ela sumiu e eu fiquei conversando com o dálmata. Perguntei a ele o que eu estava fazendo naquele lugar. Não obtive resposta. Ela voltou com uma garrafa de vinho e duas taças. O cachorro continuava lambendo a minha mão. Aquele dálmata era extremamente surrealista. O vinho já descia pela garganta. Ela mostrou alguns quadros que havia pintado em Paris, quando morou por cinco anos na Europa. Pegou no meu braço:
“Quer ouvir algo?”
“Podemos pular essa parte?
“Que parte?
“Vinho, música, et cetera.Vamos direto ao sexo”
Eu estava bêbado. Nunca consegui ser romântico com as mulheres. Acho que é por isso que eu não consigo uma namorada. O maior problema do ser humano é justamente a obrigação de se relacionar com outro ser humano. Eu só queria alguém. Alguém para dormir ao meu lado. Alguém para assistir alguns filmes do Woody Allen comigo. Alguém para dividir uma garrafa de cerveja no final de semana. Alguém para me dar a mão quando eu estivesse com depressão ou com vontade de acabar com a própria vida. Alguém para viajar comigo e encher a cara de cachaça e dormir no banco da praça. Alguém para ler as minhas poesias e criticar sem pudor. Alguém para me servir de inspiração nos dias em que faltasse criatividade. Alguém para dividir rivotril. Alguém para odiar Pink Floyd tanto quanto eu odeio. Alguém para fazer purê de batata. Alguém para brigar comigo quando eu merecesse. Alguém para ler Baudelaire. Alguém para discutir Sartre e Heidegger. Alguém para tomar um sorvete. Alguém para rir. Alguém para chorar. Alguém. Eu só queria alguém. Eu só queria descobrir o amor em alguém.
 Fodemos. Era bom estar naquele lugar. Acordei de manhã. Com cuidado, levantei da cama. Escovei os meus dentes com a escova dela. Calcei os sapatos. Ela dormia docemente. Parecia em harmonia. Foi uma visão bonita. Eu não estava pronto para ter alguém ao meu lado. Deixei-a dormindo. O dálmata veio lamber a minha mão pela última vez. Olhei para as paredes e tentei lembrar qual era Miró e qual era Dalí. Não importava. Abri a porta com muito cuidado para não fazer barulho. Encontrei o faxineiro do prédio no corredor.
“Opa”
“Opa”
Desci as escadas e nunca mais voltei. Eu estava sozinho. Eu deixava alguém para trás, mais uma vez. Melhor assim. Sentiria saudades dela, dos quadros e do dálmata.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

NÃO CONSIGO SAIR DO MEU QUARTO PORQUE A MINHA CABEÇA ESTÁ GRANDE DEMAIS


Não consigo sair do meu quarto. Poderia inventar mil e trezentas justificativas, mas prefiro falar a verdade. Não consigo sair do meu quarto porque a minha cabeça está grande demais. Sei que é difícil de acreditar. Eu mesmo daria risada se me contassem essa história. Não consigo sair do meu quarto porque a minha cabeça está grande demais. Poderia utilizar uma das mil e trezentas justificativas e dizer que não consigo sair do meu quarto porque estou muito cansado e deprimido ou dizer que não consigo sair do meu quarto por pura preguiça. Ao invés disso, prefiro revelar o verdadeiro motivo. Minha cabeça está grande demais e não passa pela porta. Eu quero sair do quarto, mas não consigo porque a cabeça não passa pela porta. E quanto mais eu explico e repito e dou detalhes, mais inacreditável fica essa história. Poderia recorrer mais uma vez às minhas mil e trezentas justificativas e jurar que não consigo sair do quarto por ter medo de enfrentar a sociedade cruel e as suas mandíbulas traiçoeiras. Poderia falar que tenho medo do mundo em que vivo e isso seria muito "natural, muito bem, obrigado". Poderia falar que tenho medo de morrer atravessando a rua, medo de morrer sozinho numa mesa de bar após encher a cara de álcool ou medo de cair da janela do décimo primeiro andar. Mas não seria verdade. Eu não consigo sair do meu quarto porque a minha cabeça está grande demais e não passa pela porta.
Na noite anterior, ao dormir, a minha cabeça estava normal. Não faço ideia de como deve ter sido o seu processo de crescimento e nem do surgimento dessa anomalia. O que eu sei é que não consigo sair do meu quarto porque a minha cabeça está grande demais e não passa pela porta. Também não consigo passar pela janela e continuo achando essa história estúpida e realmente foi algo bem estúpido tentar passar pela janela. As partes do nosso corpo não crescem de um dia para o outro de forma tão absurda. Garanto que não consigo sair do meu quarto porque a minha cabeça está grande demais e não passa pela porta. Achei mais apropriado dizer a verdade, porque o meu lado poético se utilizaria de uma daquelas mil e trezentas justificativas dizendo que não consigo sair do quarto porque não quero mais me apaixonar e completaria afirmando que a paixão é o sentimento mais idiota que um ser humano pode ter e que como toda a humanidade é completamente idiota esse é o sentimento que mais se aproxima do que deve ser a nossa essência. Somos todos ignorantes e não sabemos exatamente o que queremos. Somos todos filhos das putas uns com os outros e corajosos o suficiente quando nos olhamos nos olhos e dizemos “bom dia”. Como é difícil viver no meio de uma sociedade hipócrita, porque ao se dar conta disso você acaba se tornando cada vez mais imundo. Não consigo sair do meu quarto. Resolvi ligar para o meu médico:
“Bom dia, doutor”
“Bom dia, Gregório”
“Não consigo sair do meu quarto porque a minha cabeça está grande demais e não passa pela porta”
"Que besteira é essa, Gregório?"
"É verdade, doutor"
"Isso não é mais um dos seus romances?"
"Não, doutor"
“Então é simples. Ela deve estar cheia de pensamentos. Esvazia a mente e tenta sair do quarto em trinta minutos”
“Obrigado, doutor”
Desliguei. Fiz o que ele recomendou. Pensei em coisas supérfluas e assisti televisão. Finalmente consegui sair do meu quarto. Não havia justificativa.

sexta-feira, 29 de março de 2013

SOBRE PORNOGRAFIA, DOSTOIÉVSKI, LONGNECKS, BUKOWSKI E MAIS UM MONTE DE BESTEIRA

Estava procurando boa pornografia na internet enquanto ela, ao meu lado, lia Dostoiévski. Estávamos em uma cama de solteiro que mal cabia um. Havíamos transado a noite inteira. Eu estava sendo só mais um cara babaca que procurava boa pornografia na internet. Ela não se importava. Continuava lendo e ora ou outra buscava algumas longnecks na geladeira para nós. Eu abria as cervejas com o meu chaveiro de abridor de garrafa e continuava procurando por boa pornografia. Estava atrás daqueles tchecos loucos que pegavam uma câmera e procuravam na rua por garotas que quisessem mostrar os peitos por dinheiro então eles aumentavam a oferta e comiam essas garotas. Ficava na sessão “outdoor”, depois das sessões “milf” e “orgy”. Nunca soube se esses vídeos eram verdadeiros, digo, se as garotas realmente não conheciam os caras e realmente chupavam e metiam por dinheiro. Poderia ser tudo combinado, mas eu não estava nem aí. Eu estava mesmo era atrás de boa pornografia. Esse era o meu lance.
Ela terminou o Dostoiévski e quis conversar. Mandei-a ler Bukowski e não me encher. Já lera todos. Boa literatura é foda, quando você percebe já acabou e você acaba se tornando refém daquele autor e isso se torna mais foda ainda quando esse autor já está morto, porque você sabe que em algum momento você vai ler todas as suas obras e que quando esse dia chegar vai ficar um vazio muito grande. Os escritores deveriam receber um salário fixo para que vivessem só escrevendo, não sendo permitido fazer outra coisa que não seja escrever e que tchecas gostosas alimentassem os escritores com almoço, jantar e sexo e um banho aos sábados e então os escritores deveriam criar milhares de obras e deixar seus leitores abastecidos por uns duzentos anos.
“Então, vamos conversar sobre o quê?”
“Fala como anda a sua vida”
“Quer mesmo saber como anda a minha vida?”
“Claro”
“Então lá vai: estou morando num albergue, tenho medo de morrer assassinado enquanto durmo por algum colega de quarto, não consigo publicar os meus contos porque as editoras me odeiam, meu pai não me telefona há anos, minha mãe está pensando em casar de novo com outro canalha e aquele meu texto que liberei para um grupo de teatro estreou semana passada e recebeu a pior crítica jornalística da década”
Acho que peguei pesado demais para uma primeira noite de papo furado. Seu nome era Simone, mas a chamavam de Cida. Não sei o motivo e nunca cheguei a perguntar. Conheci-a numa livraria e transamos naquele mesmo dia, no banheiro do shopping-center. Começamos a sair. Era a primeira vez que eu ia até o apartamento dela, uma kitchenette apertada em um bairro limpo da cidade. Um bom lugar. Simone era jornalista e se apaixonava por tudo o que eu escrevia. Simone parecia atordoada:
“E o que falaram nessa crítica?”
“Um monte de besteira”
“Quem foi o crítico?”
“Um tal de Hélio”
“O Hélio? Do cabelo cacheado?”
“Sei lá”
“É meu amigo”
“Filho da puta”
Ficamos imaginando o que poderíamos fazer com o Hélio. Ela não se importou com os meus outros problemas e eu também não me importaria. Na verdade, eu realmente não me importo, apenas falei aquilo tudo porque ela queria saber como a minha vida andava e essa era a atual forma de andar da minha vida. Eu não quis mentir e isso era algo bom. Eu estava começando a ter sentimentos de carinho por aquela mulher. Nenhum dos meus problemas me importava. O que me deixava puto era a crítica daquele Hélio, que poderia acabar com a minha carreira de escritor de uma vez por todas. Era a primeira vez que eu escrevia para teatro e uma das primeiras vezes que alguém se interessava pelas minhas loucuras e, honestamente, o espetáculo estava razoável. Luz boa, interpretação razoável, sonoplastia do caralho com Júpiter Maçã e Lobão. O que Dostoiévski e Bukowski, como escritores, fariam numa situação dessas? Este certamente me mandaria encher a cara, fazendo com que eu nem parasse para ouvir os conselhos daquele. Então eu busquei mais cerveja e conferi se o vídeo das tchecas fanáticas por dinheiro já estava carregado. Menti dizendo que iria cagar e que levaria o computador junto para escrever um novo conto e me masturbei no banheiro daquela kitchenette enquanto assistia pornografia. Eu seria capaz de pagar para que o Hélio chupasse o meu pau, só para ele nunca mais criticar um texto meu. Seria uma espécie de castigo. O filho da puta do Hélio me chupando e eu falando “seu merda, quero ver você criticar os meus textos agora”. Pensei em como aqueles pensamentos eram apenas mais um monte de besteira, lavei o pau na pia e voltei para a cama de Simone. As longnecks vazias formavam uma fila na parede e nós transamos ouvindo uma banda inglesa que agora me foge o nome. Mas eu ainda pensava nas garotas tchecas.