sábado, 27 de julho de 2013

E NÃO HÁ SENSAÇÃO MELHOR DO QUE ESSA SENSAÇÃO DE LIBERDADE

     João é aquele tipo de amigo que você encontra uma vez a cada dois meses para beber uma cerveja e bater um papo interessante. As nossas conversas constantemente atravessavam a madrugada. Lá estávamos nós outra vez. Já devia ser a décima segunda garrafa de cerveja. Era bom não estar sóbrio. Estávamos num lugar bem arrumado com mesas de sinuca recém adquiridas, uma jukebox moderna e cerveja barata. O que mais se pode querer nessa vida? Tinham três garotas jogando sinuca. Suspeitávamos que eram prostitutas, daquelas de luxo, que fazem programa para pagar a faculdade de publicidade e propaganda. Na jukebox tocava Eric Clapton. O pessoal daquele lugar tinha bom gosto. Falávamos sobre o capitalismo. João então começou a se queixar.
     “É que às vezes eu paro e me pergunto: pra quê? Como lutar contra esse sistema vigente? Será que vale a pena, Gregório, viver essa minha vida medíocre? Sabe, eu não me sinto mais atraído por essa rotina de acordar, trabalhar o dia inteiro para ganhar algum dinheiro, chegar em casa cansado, ligar o televisor e ser bombardeado por propagandas que me mostram o quão merda eu sou e o quão aceitável pela sociedade poderei ficar se comprar coisas que eu não faço a mínima questão de ter, então eu concordo com a porra da TV e troco parte do meu dinheiro por algo que logo vai ser jogado fora, então fico depressivo por não ter dinheiro e novamente preciso acordar para trabalhar o dia inteiro, et cetera, et cetera. Não me sinto mais a vontade fazendo isso. Não sou mais feliz, Gregório. Entende o que quero dizer?”
     “Sei lá”
     “Como sei lá?”
     “Sei lá, João. Não sabendo. Nunca pensei nessa porra”
     “Nunca pensou? Você é um escritor, Gregório. Em algum momento da sua vida você deve ter pensado nisso. Artistas pensam nisso o tempo inteiro. Eu não, eu sou só um velho gordo que curte The Who, anda de moto, trabalha numa merda de escritório o dia inteiro e reclama da vida”
     “Acho The Who do caralho também. Viu os shows recentes que estão fazendo?”
     “Porra, Gregório, estou falando sério”
     “Calma. Eu entendo essa sua insatisfação. É que, sei lá, eu escolhi outro estilo de vida, então não fico pensando muito nisso. Não tenho esses tipos de questionamentos. Eu trabalho quando quero. Não sou atingido pela mídia de massa. Estou cagando para plano de carreira, aposentadoria, FGTS, 13º e para todo o resto”
     “E você sente que está fazendo a coisa certa?”
     Então eu parei para pensar. Na verdade, eu parei para pedir a décima terceira garrafa de cerveja. Aproveitei e comprei cigarros. Os meus estavam acabando. Eu consigo pensar muito melhor quando estou com cerveja e cigarros. Quando a cerveja e o cigarro chegaram eu comecei a pensar: eu estava fazendo a coisa certa? O que eu poderia dizer sobre a minha vida? Subempregos temporários e muitas apostas. A aposta de que um dia alguma grande editora publicaria algum romance meu – e a aposta de que haveria um público para isso. E com o sucesso viriam festas, dinheiro, jantares fartos. Mas via esse sonho, com o passar dos anos, ficando cada vez mais impossível de ser atingido. Eu continuava passando fome. Eu continuava buscando um pouco de felicidade no álcool e no cigarro. E se o João não estivesse pagando a cerveja, eu certamente estaria bebendo cachaça para ficar bêbado mais rápido e gastar menos no fim. Quando mesmo eu tinha me transformado em um alcoólatra?
     “Não sei se estou fazendo a coisa certa”
     “É disso que estou falando”
     Uma das garotas da sinuca fixou o olhar em mim. João me alertou. Eu não me importei. O dinheiro que eu ganhava no mês não pagaria nem mesmo um boquete dela. Mas a questão não era essa. A questão é que há tempos que eu não parava para avaliar o quão fodida estava a minha vida. Eu me sentia sentado em um vagão de trem enquanto via a minha vida passar pela janela. E eu sempre tive consciência disso. Eu sempre observei a vida passar. Acontece que eu nunca pude fazer nada. Eu nunca pude levantar do vagão. E agora, naquela mesa de bar, conversando com João, com as futuras publicitárias me encarando, na décima e lá vai porrada garrafa de cerveja, eu estava tendo a chance de descer do vagão. Sim, o trem finalmente me dava uma chance. E a minha vida lá atrás, bem longe de onde eu estava. Mas o trem estava parado.
     “João, desculpa, eu preciso ir embora”
     Eu precisava descer do trem. Eu precisava rever a vida, que há tanto tempo ficou para trás. Olhei diretamente para a luz que vinha do outro lado da calçada. Aquela luz amarela dos postes do centro da cidade me deixava com náuseas. Mas era um soco de realidade no estômago. Era a única prova de que eu não estava delirando. Deixei um trocado para ajudar na cerveja. João recusou. Ele ainda insistiu para que eu ficasse um pouco mais, que me levaria em casa depois, sem problemas, mas eu não aceitei. João é aquele tipo de amigo que entende quando você precisa partir assim, repentinamente, sem mais nem menos. Eu realmente precisava partir. Eu realmente precisava andar. Eu precisava ir para outro lugar. Eu precisava ir atrás da minha vida. E eu fui.
     Andei muito. Não lembro o que pensei nesse tempo em que andei, mas sei que andei muito. Conhecia todas aquelas ruas. Atravessei avenidas inteiras. Passei por viadutos e praças. Eu estava indo atrás de algo que eu não sabia o que era. Eu estava indo atrás de tudo aquilo que eu deixei de viver. Mas não sabia exatamente o que era. Era uma busca abstrata. Eu já estava quase na saída da cidade. Estava amanhecendo. A sensação de estar na rua quando está amanhecendo é uma das melhores que existem. Dá tesão. Inclusive, meu pau estava duro. Não havia conotação sexual. Meu pau estava duro porque a energia que corria pelo meu corpo era uma energia nova. Era uma energia que eu nunca poderia ter se continuasse sentado no vagão. E eu não sabia o que era. E precisava saber? Sentia que estava pronto para escrever um novo romance a qualquer momento. Encontrei um boteco aberto. Era a minha salvação. Era tudo o que eu precisava naquele momento.
     “Bom dia. Tem cachaça?”
     “Seleta e Boazinha”
     “Vê um dose da Boazinha”
     O sol nascia enquanto eu bebia e olhava para a rodovia. As pessoas em seus carros rumo à capital. Algumas a trabalho, outras a passeio. E eu bebendo a minha Boazinha. Eu estava bem. Eu estava feliz. Eu estava fora do trem. E não há sensação melhor do que essa sensação de liberdade.


(Texto disponível também no endereço: www.blahcultural.com/e-nao-ha-sensacao-melhor-do-que-essa-sensacao-de-liberdade/)