sexta-feira, 12 de abril de 2013

AQUELE DÁLMATA ERA EXTREMAMENTE SURREALISTA


Estava cansado de tudo. Sempre estou desse jeito, mas naquela terça-feira eu estava me superando. Entrei no primeiro ônibus que passou e fui parar no centro da cidade. Andei por ruas desconhecidas até encontrar um bar interessante com algumas mesas na calçada e sinuca. O lugar tinha um cheiro insuportável de mijo, mas a cerveja estava muito gelada, então resolvi ficar por ali mesmo. Algumas prostitutas estavam à disposição num canto e no som tocava Reginaldo Rossi. Clima agradável. Eu estava curtindo. Já eram onze e meia da noite quando eu pedi a terceira garrafa de cerveja. Era bom beber sozinho, sem ninguém para encher o saco. Às vezes é só isso que você precisa: ninguém para encher o saco.
“Senhor, aquela moça pagou um conhaque para você”
“Está bem, pode trazer”
A moça acenou e sorriu. Não retribuí. Eu queria ficar sozinho. Por que era tão difícil de entenderem? Alguns minutos, meio conhaque depois e ela veio em minha direção. Sentou-se ao meu lado. Ficamos em silêncio durante algum tempo. Esperei que ela puxasse assunto.
“Que dia feio”
“Pois é”
“Você é de onde?”
“Da cidade”
“De que parte?”
“Do outro lado”
“Entendi”
“Pois é”
“O que você faz da vida?”
“Sou escritor”
“Escreve o quê?”
“Poesias, contos, romances”
“Legal. Quais os temas?”
“Falo sobre mim”
“E as pessoas se interessam?”
“Não me importo. Escrevo sobre mim porque sou o que eu sei de melhor”
“Entendi”
“Pois é”
Eu estava achando a conversa tão chata que acabei virando o resto do conhaque de uma só vez. Desceu queimando a garganta e por um instante senti todo o percurso interno. Depois de quanto tempo a bebida chega ao fígado? Enquanto mantinha a dúvida na cabeça, observei a minha companheira de mesa. Era bonita, tinha um rosto gordo e olhos verdes. Belo par de seios gordos. Mas não era gorda.
“Você é prostituta?”
Ela riu. Eu não achei a menor graça.
“Você acha que se eu fosse prostituta pagaria um conhaque para você?”
“Talvez”
“Não sou. Eu sou artista plástica”
“Legal”
“Não quer mais uma cerveja?”
“Estou quebrado”
“Eu pago”
“Tudo bem”
Ela pediu mais uma garrafa e um copo para ela. Comecei a gostar dela, mas não demonstrei interesse. Aprendi com o tempo que não se deve demonstrar interesse pelas pessoas. Truques que a vida ensina. Eu já me decepcionei demais. Bebemos e conversamos sobre política e MPB, não ao mesmo tempo. O papo começou a ficar bom. Bebemos mais duas garrafas e pedimos a conta. Ela pagou tudo. Quando percebi, estava indo para a casa dela. Não lembro o caminho que fizemos. Subimos três lances de escada para chegar ao apartamento e eu pensei que não conseguiria e já estava quase desistindo, mas quando vi já estava dentro do apartamento da artista plástica com um dálmata lambendo a minha mão e todos aqueles quadros na parede. O quão bêbado eu estava?
“Quem são?”
“Esse é Miró. Aquele é Cézanne. Perto do banheiro é Dalí. E ao lado da porta da cozinha são vários do Picasso”
“Esses caras são fodidos”
Eram fodidos mesmos. Achei tudo muito interessante. Ela sumiu e eu fiquei conversando com o dálmata. Perguntei a ele o que eu estava fazendo naquele lugar. Não obtive resposta. Ela voltou com uma garrafa de vinho e duas taças. O cachorro continuava lambendo a minha mão. Aquele dálmata era extremamente surrealista. O vinho já descia pela garganta. Ela mostrou alguns quadros que havia pintado em Paris, quando morou por cinco anos na Europa. Pegou no meu braço:
“Quer ouvir algo?”
“Podemos pular essa parte?
“Que parte?
“Vinho, música, et cetera.Vamos direto ao sexo”
Eu estava bêbado. Nunca consegui ser romântico com as mulheres. Acho que é por isso que eu não consigo uma namorada. O maior problema do ser humano é justamente a obrigação de se relacionar com outro ser humano. Eu só queria alguém. Alguém para dormir ao meu lado. Alguém para assistir alguns filmes do Woody Allen comigo. Alguém para dividir uma garrafa de cerveja no final de semana. Alguém para me dar a mão quando eu estivesse com depressão ou com vontade de acabar com a própria vida. Alguém para viajar comigo e encher a cara de cachaça e dormir no banco da praça. Alguém para ler as minhas poesias e criticar sem pudor. Alguém para me servir de inspiração nos dias em que faltasse criatividade. Alguém para dividir rivotril. Alguém para odiar Pink Floyd tanto quanto eu odeio. Alguém para fazer purê de batata. Alguém para brigar comigo quando eu merecesse. Alguém para ler Baudelaire. Alguém para discutir Sartre e Heidegger. Alguém para tomar um sorvete. Alguém para rir. Alguém para chorar. Alguém. Eu só queria alguém. Eu só queria descobrir o amor em alguém.
 Fodemos. Era bom estar naquele lugar. Acordei de manhã. Com cuidado, levantei da cama. Escovei os meus dentes com a escova dela. Calcei os sapatos. Ela dormia docemente. Parecia em harmonia. Foi uma visão bonita. Eu não estava pronto para ter alguém ao meu lado. Deixei-a dormindo. O dálmata veio lamber a minha mão pela última vez. Olhei para as paredes e tentei lembrar qual era Miró e qual era Dalí. Não importava. Abri a porta com muito cuidado para não fazer barulho. Encontrei o faxineiro do prédio no corredor.
“Opa”
“Opa”
Desci as escadas e nunca mais voltei. Eu estava sozinho. Eu deixava alguém para trás, mais uma vez. Melhor assim. Sentiria saudades dela, dos quadros e do dálmata.