sexta-feira, 29 de março de 2013

SOBRE PORNOGRAFIA, DOSTOIÉVSKI, LONGNECKS, BUKOWSKI E MAIS UM MONTE DE BESTEIRA

Estava procurando boa pornografia na internet enquanto ela, ao meu lado, lia Dostoiévski. Estávamos em uma cama de solteiro que mal cabia um. Havíamos transado a noite inteira. Eu estava sendo só mais um cara babaca que procurava boa pornografia na internet. Ela não se importava. Continuava lendo e ora ou outra buscava algumas longnecks na geladeira para nós. Eu abria as cervejas com o meu chaveiro de abridor de garrafa e continuava procurando por boa pornografia. Estava atrás daqueles tchecos loucos que pegavam uma câmera e procuravam na rua por garotas que quisessem mostrar os peitos por dinheiro então eles aumentavam a oferta e comiam essas garotas. Ficava na sessão “outdoor”, depois das sessões “milf” e “orgy”. Nunca soube se esses vídeos eram verdadeiros, digo, se as garotas realmente não conheciam os caras e realmente chupavam e metiam por dinheiro. Poderia ser tudo combinado, mas eu não estava nem aí. Eu estava mesmo era atrás de boa pornografia. Esse era o meu lance.
Ela terminou o Dostoiévski e quis conversar. Mandei-a ler Bukowski e não me encher. Já lera todos. Boa literatura é foda, quando você percebe já acabou e você acaba se tornando refém daquele autor e isso se torna mais foda ainda quando esse autor já está morto, porque você sabe que em algum momento você vai ler todas as suas obras e que quando esse dia chegar vai ficar um vazio muito grande. Os escritores deveriam receber um salário fixo para que vivessem só escrevendo, não sendo permitido fazer outra coisa que não seja escrever e que tchecas gostosas alimentassem os escritores com almoço, jantar e sexo e um banho aos sábados e então os escritores deveriam criar milhares de obras e deixar seus leitores abastecidos por uns duzentos anos.
“Então, vamos conversar sobre o quê?”
“Fala como anda a sua vida”
“Quer mesmo saber como anda a minha vida?”
“Claro”
“Então lá vai: estou morando num albergue, tenho medo de morrer assassinado enquanto durmo por algum colega de quarto, não consigo publicar os meus contos porque as editoras me odeiam, meu pai não me telefona há anos, minha mãe está pensando em casar de novo com outro canalha e aquele meu texto que liberei para um grupo de teatro estreou semana passada e recebeu a pior crítica jornalística da década”
Acho que peguei pesado demais para uma primeira noite de papo furado. Seu nome era Simone, mas a chamavam de Cida. Não sei o motivo e nunca cheguei a perguntar. Conheci-a numa livraria e transamos naquele mesmo dia, no banheiro do shopping-center. Começamos a sair. Era a primeira vez que eu ia até o apartamento dela, uma kitchenette apertada em um bairro limpo da cidade. Um bom lugar. Simone era jornalista e se apaixonava por tudo o que eu escrevia. Simone parecia atordoada:
“E o que falaram nessa crítica?”
“Um monte de besteira”
“Quem foi o crítico?”
“Um tal de Hélio”
“O Hélio? Do cabelo cacheado?”
“Sei lá”
“É meu amigo”
“Filho da puta”
Ficamos imaginando o que poderíamos fazer com o Hélio. Ela não se importou com os meus outros problemas e eu também não me importaria. Na verdade, eu realmente não me importo, apenas falei aquilo tudo porque ela queria saber como a minha vida andava e essa era a atual forma de andar da minha vida. Eu não quis mentir e isso era algo bom. Eu estava começando a ter sentimentos de carinho por aquela mulher. Nenhum dos meus problemas me importava. O que me deixava puto era a crítica daquele Hélio, que poderia acabar com a minha carreira de escritor de uma vez por todas. Era a primeira vez que eu escrevia para teatro e uma das primeiras vezes que alguém se interessava pelas minhas loucuras e, honestamente, o espetáculo estava razoável. Luz boa, interpretação razoável, sonoplastia do caralho com Júpiter Maçã e Lobão. O que Dostoiévski e Bukowski, como escritores, fariam numa situação dessas? Este certamente me mandaria encher a cara, fazendo com que eu nem parasse para ouvir os conselhos daquele. Então eu busquei mais cerveja e conferi se o vídeo das tchecas fanáticas por dinheiro já estava carregado. Menti dizendo que iria cagar e que levaria o computador junto para escrever um novo conto e me masturbei no banheiro daquela kitchenette enquanto assistia pornografia. Eu seria capaz de pagar para que o Hélio chupasse o meu pau, só para ele nunca mais criticar um texto meu. Seria uma espécie de castigo. O filho da puta do Hélio me chupando e eu falando “seu merda, quero ver você criticar os meus textos agora”. Pensei em como aqueles pensamentos eram apenas mais um monte de besteira, lavei o pau na pia e voltei para a cama de Simone. As longnecks vazias formavam uma fila na parede e nós transamos ouvindo uma banda inglesa que agora me foge o nome. Mas eu ainda pensava nas garotas tchecas.

sexta-feira, 22 de março de 2013

É COMO DIZ NA BANDEIRA NACIONAL


Matei uma barata enquanto assistia televisão sábado à noite. Ela tentou escapar, mas eu nunca as deixo sobreviverem. Eu estava rodeado pela morte. Tudo que cruzava o meu caminho morria e eu continuava vivo. Nunca quis que fosse assim. É como diz na bandeira nacional: ordem e progresso. Comigo estava tudo em ordem e eu seguia progredindo. Às vezes eu pegava uma gripe ou algo mais grave e ficava alguns dias trancado dentro de casa esperando. Na maior parte do tempo eu seguia progredindo. Mas progredindo para onde? O ser humano é tão estranho: você está lá zapeando a televisão num sábado à noite ao invés de estar com amigos bebendo uma cerveja no bar e de repente se interessa por um programa que fala da vida na Austrália, sendo que você está do outro lado do planeta com a vida acontecendo ao seu lado sem que você dê importância para esse fato. Outro dia eu pensei em cancelar esses canais, mas eu me divirto tanto com esses programas! Tem também aqueles de outros países como Itália, França e Japão que me mostram o quão idiota o ser humano é e de como a posição geográfica não modifica isso.
Eu estava com caganeira, então corri para o banheiro. Não saia de casa desde quinta, que foi quando o céu começou a ficar nublado. Eu não queria ser surpreendido pela chuva e nem precisar olhar para a cara de bunda de outras pessoas e entrar em papos do tipo “vai chover?”. Eu já estava cansado de tudo. Mas eu continuava vivo. Estava naquela fase de achar a vida uma grande merda. As pessoas odiavam conversar comigo porque eu parecia com aqueles velhos chatos que só reclamam da aposentadoria e de como não se fazem mais as coisas como antigamente. A vida é uma grande merda. Você levanta de manhã, abre a geladeira, bebe uma cerveja, fuma um cigarro e se dá conta de que a vida é uma grande merda. Era a fase em que eu me encontrava.
Enquanto cagava, pensava em tudo o que eu poderia ter feito de útil na minha vida e não fiz. Comecei a chorar. É só mais um daqueles momentos em que você começa a chorar. Você não tem motivo, mas começa a chorar. Às vezes não é necessário um motivo, você tem um acesso de nostalgia ao lembrar que já chorou assim e pronto, começa a chorar descontroladamente. Você pensa que o ser humano chora porque é arrogante, medroso, fraco e fodido, então você se dá conta de que é ser humano e que você é arrogante, medroso, fraco e fodido. Esse é só mais um daqueles momentos. Matei outra barata, limpei a bunda e voltei para a sala pensando na grande merda que era a vida.
O telefone não tocava e nunca iria tocar. Ninguém se importava em me tirar daquela situação. Estão certos. Eu faria o mesmo. Eu não iria morrer tão cedo. A minha vida seguia decepcionante. Queria fumar um cigarro e mandar o mundo para o inferno. Eu seguia vivendo. Apesar de tudo, era bom estar vivo. Sabe, eu realmente estava vivendo. Eu estava progredindo. É como diz na bandeira nacional.

sexta-feira, 15 de março de 2013

EU SÓ QUERIA PODER TREPAR MAIS UMA VEZ COM VOCÊ


Você com certeza chupará outros caras ao longo da vida e será comida por alguém que realmente esteja apaixonado por você. Eu apenas não consigo suportar isso e nem imaginar todas as suas futuras fodas. Eu mesmo já conheci bocas mais macias e úmidas depois que nos separamos e tive orgasmos incríveis, mas não consigo aceitar que o mesmo pode acontecer a você, se é que já não aconteceu. Agora mesmo você pode estar dando para outro cara enquanto eu estou aqui lembrando das nossas noites de tesão. Das vezes que fomos para aquele motel barato sem água quente. Das trepadas no banco de trás do carro em plena luz do dia embaixo de um Sol de rachar e eu lambendo o seu suor e sufocando de prazer. Das fodas rápidas na escadaria do prédio. Eu ainda me sinto tão sintonizado a você que enquanto geme do outro lado da cidade no colo de outro cara eu estou aqui me masturbando ao lembrar de como éramos felizes. Eu estou ficando louco porque é muito difícil imaginar você feliz com outra pessoa. Posso parecer egoísta. Foda-se. Estou sempre pensando coisas desse tipo. Todo dia eu acordo com vontade de estar ao seu lado, mas então lembro que perdi você por alguma merda que aconteceu. Para a puta que pariu com tudo isso. Sou capaz de atravessar a cidade inteira para tirar você do colo desse fulano e voltarmos para casa. Como o príncipe que enfrenta diversos obstáculos para salvar a princesa de um dragão que cospe fogo. O nosso travesseiro sente saudade do cheiro que você costumava deixar. Larga tudo e vem ser feliz comigo de novo, por favor.
Você com certeza está chupando outro cara e está sendo comida por alguém que realmente esteja apaixonado por você. Eu apenas não consigo suportar isso. Eu queria continuar sendo o cara chupado e queria muito que você notasse o quão apaixonado eu sou. Eu posso escrever um livro falando da importância que você teve na minha vida e de como era bom trepar com você e eu duvido que esse novo cara seja capaz de fazer algo tão impressionante assim. É difícil explicar o quanto dói. Eu me sinto impotente por não poder pegar um cavalo e encontrar a torre mais alta do castelo. Eu quero salvar você, mas sei que você não quer ser salva. Você não deve sentir tanta saudade quanto eu sinto. Não pode passar pela minha cabeça a imagem da sua boca na boca de outro cara e as línguas entrelaçadas e uma troca intensa de saliva. O teu bico do peito duro ao toque desse estranho e ele de membro ereto. Prefiro mil vezes morrer ao ter que imaginar essa cena pavorosa de outro homem te enrabando e gozando nas suas coxas. Iria até o inferno para evitar que isso acontecesse. E a grande merda é que eu mesmo já toquei outros bicos de peito e já fiquei de membro ereto e enrabei outras mulheres depois de você.
Não demos certo, mas eu sinto a sua falta. Nós fomos um fracasso. Eu preciso sentir a sua respiração e tocar seu corpo. Não admito que respire no ouvido de outras pessoas e nem que tenha o seu corpo tocado. Quem mais sabe as áreas exatas que lhe dão prazer e que sempre fez com que você goze primeiro? Choro ao pensar que outro homem pode proporcionar tudo o que eu proporcionei a você. Tenho raiva desse cara que coloca você de quatro e penetra com o seu membro o lugar que costumava ser meu.
Você com certeza já chupou outro cara e já foi comida por alguém que realmente estava apaixonado por você. Eu não posso fazer nada. Eu tenho um único pedido. Eu só queria poder trepar mais uma vez com você. Sei que não posso. Então choro. Será que ninguém mais choraria?

sexta-feira, 8 de março de 2013

OUVINDO UM LP DO CHICO BUARQUE E PENSANDO NELA


Eu pensei nela antes de dormir. Ouvi alguém quebrar um copo na rua e continuei pensando nela. A vida corria tão depressa. Escovei os dentes, li Kafka e dormi. Tudo pensando nela. Acordei lendo uma mensagem no visor do celular.
“Me ligou?”
Havia ligado para ouvir a voz dela, mas não a esperei atender. Menti:
“Foi sem querer”
Eu pensava nela, mas ela não pensava em mim. Ela sabia que eu pensava nela e mesmo assim ela não pensava em mim. Comprei a filmografia do Almodóvar, que ela tanto adorava. Não tive coragem de convidá-la para assistir, então assisti sozinho. Ela não sabia disso. Eu pensava no quão idiota era por não conseguir esquecê-la. E quanto mais ela me ignorava e não se importava mais e mais eu não conseguia esquecê-la e isso só o mostrava o quão idiota eu era. E eu definitivamente me considerava muito idiota por ter comprado a filmografia do Almodóvar. Levantei e fui cozinhar.
Tudo me fazia pensar nela. O arroz me fazia pensar nela. O alho picado fritando no canto da frigideira me fazia pensar nela. Abri uma garrafa de vinho – que me fazia pensar nela – enquanto as panelas estavam no fogão. Coloquei um LP do Chico Buarque na vitrola. Quando você me deixou, meu bem, me disse pra ser feliz e passar bem. Bebia o vinho e pensava nela. Olhei pela janela e vi do outro lado da rua um vira-lata chafurdando o lixo. Isso não me fazia pensar nela, mas ao pensar nisso acabei pensando nela. Que merda que era não conseguir esquecê-la. Pensei em ligar para uma ex-namorada para ver se conseguia tirá-la da cabeça, mas não lembrei o número do telefone. Almocei. Quantos imbecis no planeta almoçam bebendo vinho, ouvindo Chico Buarque e pensando em uma mulher? Olhos nos olhos, quero ver o que você faz. Ao sentir que sem você eu passo bem demais. Bebi mais vinho e peguei um cigarro. Bati as cinzas e fui para frente do espelho. Em cinco anos de vício foi a primeira vez que vi o quão feio era esse imagem. A ponta do cigarro brilhando em brasa e a fumaça invadindo o corpo. Que imagem feia. Larguei o cigarro. Ela também não fumava. Jurei que o motivo de ter largado era a imagem no espelho. Quantos imbecis no planeta param de fumar? Talvez eu fosse só mais um idiota que pensava em largar o vício e que assistia aos filmes do Almodóvar. Escrevi uma mensagem no celular para ela:
“Ele pensou nela antes de dormir. Ouviu alguém quebrar um copo na rua e continuou pensando nela. A vida corria tão depressa. Escovou os dentes, leu Kafka e dormiu. Tudo pensando nela”
Enviei. Em menos de cinco minutos chegava a resposta:
“Que bonito, é seu?”
“Sim. É o começo de um conto que estou escrevendo. Pretendo lançar em livro”
“E eu vou ser a primeira a comprá-lo”
Sorri. Corri para lavar a louça. Fiz isso pensando nela. Quando talvez precisar de mim, cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim. Continuei ouvindo Chico Buarque enquanto lavava a louça. Pensava se hoje seria “Tudo Sobre Minha Mãe” ou “Volver”. Pensava em acender o próximo cigarro. Pensava na vida. Pensava nela.

sexta-feira, 1 de março de 2013

AINDA ME LEMBRO DO FIM DE DEZEMBRO


Chovia forte. Meu pai estava no hospital. Fui visitá-lo. Que lugar horrível. Aquela luz branca, aquelas pessoas esperando e aquele cheiro incômodo de sei-lá-o-quê. Era fim de dezembro e fazia mais de vinte anos que não nos víamos, desde que ele saiu de casa por ter agredido minha mãe. Aquele lugar me dava náuseas. Preenchi uma ficha na recepção e devolvi para a atendente loira e gorda que mexia freneticamente no computador. Demorou a reparar que eu já havia preenchido. Então, passei por algumas portas e procurei o quarto. Ele se surpreendeu quando apareci:
“E aí, meu velho! Como você está?”
“Gregório, como vai?”
Estava magro. Cabelos grisalhos, manchas pelo corpo e olhar perdido. Acho que estranhou minha barba e o maço de marlboro vermelho que estava a mostra no bolso da camisa. Ele estava mal para caralho. Não conseguia falar direito. Balbuciou algo que não consegui entender. Precisei me abaixar e encostar a orelha em sua boca:
“Desculpa, meu filho. Desculpa por tudo”
“Deixa disso, já faz tanto tempo”
Ele tentou discutir, mas não deixei. Eu não estava lá para que ele pedisse desculpas. Estava preocupado com a saúde dele. Era somente esse o motivo de estar naquele lugar tenebroso. Se em tanto tempo ele não me procurou para explicar o que aconteceu não seria numa cama de hospital que o faria. Ficamos sem assunto por um tempo. Pensei em perguntar do Palmeiras, mas lembrei que o time estava mal na tabela. Eu estava sem jeito, ali, na frente do meu pai.
“Que foda, hein, pai!”
Ele fez uma cara de “pois é, veja só o que aconteceu comigo”. Que merda que era estar naquela situação. Tanto eu quanto ele. Nunca imaginei que sentiria pena do meu pai. Senti muita pena. E essa sensação tem algo de estranho, essa sensação de sentir pena de alguém. Nesse mundo de informações rápidas não dá tempo de pensar em sentir pena. Quando você vê, já foi. No entanto, lá estava eu, num quarto de hospital com o meu pai, sentindo pena dele. Que belo programa em família.
“Você anda fumando?”
“Fumo, pai. Faz um tempo. Mas eu quero parar”
Mais uma vez o silêncio. Na minha família ninguém fumava, exceto eu. Eu sempre me senti o diferente. O porra-louca que se acaba em nicotina e acha que é escritor. Para o inferno com tudo! Não passava o natal com eles para não ouvir coisas do tipo “mas o seu primo fulano é advogado”. Preferia fumar mil cigarros a aturar meus tios e seus discursos sobre ter um bom emprego e poder oferecer uma vida digna para a família. O que eles sabiam sobre dignidade?
A enfermeira veio e mexeu em alguns aparelhos. Eu conhecia alguns deles por causa dos filmes, mas não sabia suas funções. Se alguma merda acontecesse eu não seria útil. Quando ela saiu meu pai me olhou com um sorriso:
“Gostosa, não é?”
“É, pai”
Talvez ele achasse que eu fosse o culpado. Eu que deveria pedir desculpa? Eu era uma criança na época, não entendia os motivos dele e nunca cheguei a entender. Eu apenas chamei a polícia. Não posso ser culpado. Lembrei-me do policial perguntando meu nome e do meu pai indo para a delegacia na viatura. Porra, pai, você fodeu com tudo, não eu. Ele foi obrigado a sair de casa. Nos três primeiros anos eu ligava para desejar feliz aniversário. Eu tão animado. Ele não ligava nos meus aniversários. Eu me sentia mal. Comecei a não ligar. Por isso odeio aniversários.
“Pai, sou escritor agora”
“Legal”
“Escrevi um poema pra você. Quer que eu leia?”
“Pode ser amanhã? Estou tão cansado”
O poema podia esperar. Isso significava que eu teria que voltar ao hospital no dia seguinte. Não achei ruim. Até gostei. Sorri. Apesar de tudo, era o meu pai. Conversamos. Ele falou sobre a escalação da seleção brasileira de futebol. Eu cagava para futebol, mas para o deixar feliz tive que comentar e xingar o técnico por não ter chamado aquele atacante do Palmeiras.
“Como ele não foi escalado? Esse cara deve estar louco, não é?”
“É, pai. O senhor tem razão”
 Então nos despedimos e fui para casa. Passei pela loira gorda que continuava frenética com seu computador. Ao entrar em casa fui direto para a varanda fumar um cigarro e chorar. Não lembrava como era chorar. A fumaça do cigarro descendo pela garganta e proporcionando prazer enquanto a lágrima corria pelo rosto e morria no azulejo do chão. Poético e bonito, se não fosse triste. Chorava e fumava, enquanto passado e presente se uniam. Era fim de dezembro. A chuva havia parado. Dormi.
No dia seguinte os grilos cantavam quando ligaram do hospital me informando que meu pai havia falecido. Estava quente. Os grilos cantavam. Quantos grilos eram necessários para fazer aquele ruído? Senti que precisava ter lido aquele poema no dia anterior. Os grilos cantavam e meu pai estava morto. Meus tios correram com toda a questão burocrática. Precisei comparecer apenas em seu enterro. Rasguei o poema naquele dia. Era fim de dezembro. Eu já não lembrava mais do poema. Todo ano, na mesma época, os grilos me lembrariam da morte dele. Daqui a vinte anos, no futuro, eu finalmente largarei o cigarro e lembrarei o poema inteiro, palavra por palavra. Eu vou chorar nesse dia. Mas isso somente daqui a vinte anos. Eu ainda não sei que isso acontecerá. Nesse dia, os grilos irão cantar. Mas eu ainda não sei que isso acontecerá. Somente daqui a vinte anos. Tudo por causa do fim de dezembro.