sexta-feira, 5 de julho de 2013

METAMORFOSEANDO KAFKA

Álvaro sempre foi o valentão da turma. Ninguém mexia com ele. Desde a terceira série batia em todos - e quando eu digo que batia em todos, era porque ele batia em todos mesmo. Não existia desafio para Álvaro. Sabe, ele era o mais forte do colégio, ninguém queria arrumar confusão. Uma vez, quando estávamos no ensino médio, deu um soco tão potente num metido a sabichão que a cabeça do garoto bateu com muita força na parede e todos nós ficamos com medo de que algo grave tivesse acontecido. Prendemos a respiração, atônitos, preocupados. Só começamos a rir quando nos certificamos que ele continuava vivo. Então a diretora enviou um bilhete para a mãe de Álvaro. Ela não se importou. Álvaro era o cara e por isso que gostávamos de ser seu amigo. Às vezes ele batia na gente também, mas era de brincadeira. Legal mesmo era ver como batia nos outros. Ninguém mexia com a gente.
Estava em casa assistindo TV e bebendo cerveja quando recebi um e-mail do editor do jornal que eu era colaborador. Ele me pediu um texto sobre a época da escola. Achei um porre. Ele sabia que o meu estilo era outro. Escrevia sobre o submundo, sobre as ruas, sobre o estar sempre na merda. Não lembrava de muitos detalhes da época escolar, algumas memórias o tempo fez questão de apagar, mas trabalho é trabalho e o jornal pagava em dia. E lá estava eu em casa em frente ao computador, bebendo cerveja e tentando trabalhar. Todos os meus textos começavam a ser escritos após quatro ou cinco latinhas de cerveja. Era a sétima latinha aberta, nenhuma palavra. Busquei inspiração em Kafka, mesmo a obra do autor não tendo nenhuma relação com o tema. Uma vez li em algum lugar que Gabriel García Márquez decidiu se tornar escritor após ler a primeira frase de A Metamorfose. Eu lia Kafka e García Márquez todo dia e nunca conseguia escrever algo que prestasse. Mas seguia tentando. É esse o sentido da vida: seguir tentando. Eu seguia. Meus olhos perseguiam as palavras de Kafka, mas nada parecia despertar o meu lampejo criativo. Eu precisava iniciar aquele texto de forma genial. Eu precisava garantir o meu aluguel. Seguia tentando.
Pela janela, subitamente, um inseto entra na sala e paira em volta da lâmpada. Tomo um susto. Dou um pulo da cadeira e não tiro os olhos do inseto. Ele parece perceber, se debate, encontra um lugar para pousar. Busco algo para jogar nele, mas só tenho latas de cerveja vazias ao meu alcance. O desodorante spray é o objeto mais próximo. Aperto o botão e encharco o inseto completamente. Ele não se mexe. Não sei muito bem o que fazer. Mantenho a calma, é só um inseto. É só um mísero e insignificante inseto estragando a minha noite. Busquei valentia. Arremessei uma almofada contra ele. Voou para o outro lado da sala. Pousou sobre o toca discos.
"Vou rir muito dessa história quando contar para o pessoal mais tarde"
Fiquei uns cinco minutos parado, esperando que algo acontecesse. Não pensei em nada nesses cinco minutos. Imagino ter sido cinco minutos, porque pareceu durar quatro horas e meia. Eu permaneci imóvel durante esse tempo, assim como o inseto. Não aconteceu nada. Busquei um chinelo no quarto e quando voltei não o encontrei. Entrei em desespero. Eu o havia perdido. Agora ele poderia estar em qualquer lugar. Estava escondido, certamente me atacaria quando eu menos esperasse. Já imaginava as suas asas roçando meus pés enquanto eu dormia e o susto que eu levaria ao acordar e ver aquele enorme bicho subindo pela cama. Suas patas afundando no colchão e sua pelugem me aquecendo. Seu bafo de inseto e suas antenas invadindo meu corpo e eu gritando e chamando por socorro.
Na rua o vento produzia ruídos e trazia o outono com suas chuvas típicas. Abri todas as janelas da casa, na esperança de libertar o meu prisioneiro. Sem sombra de dúvidas, eu não o queria ali. Reparei em cada detalhe da minha sala e para a minha surpresa, haviam espaços nunca antes analisados. Havia um espaço logo acima da estante de vidro, onde ficavam alguns livros que eu nunca vira anteriormente. Na parede uma mancha de café. O ventilador de teto também, cor de mogno, com detalhes em dourado. Os fios soltos entre o ventilador e o teto. Cansei e busquei uma dose de uísque na cozinha. Enquanto enchia o copo pensava no quão medroso eu estava sendo. Era apenas um inseto. Eu não estava em um conto de Kafka, me transformando no próprio inseto. Era uma situação comum, apenas um simples inseto entrando no apartamento de um humano que mora na cidade grande. Um mísero e insignificante inseto. Ao voltar para a sala dei de cara com ele. Pousou na parede oposta a janela. Era o momento que todos aguardavam. Apenas eu e ele. Eu, a minha dose de uísque e ele. Bebi dois goles. Ele permanecia imóvel. Coloquei o copo sobre a mesa. Caminhei em direção ao inseto. Suei. Pensei algumas vezes no que poderia resultar desse encontro. Mas a coragem havia tomado conta de mim. Eu já estava muito próximo a ele. Não havia outra opção. Estávamos quase grudados. Sem hesitar, dei um soco na parede. Peguei-o em cheio, assim como Álvaro fez com o nosso antigo colega. Diferente daquela vez, o meu alvo estava morto. A parede ficou suja de uma gosma marrom e vermelha. A minha mão estava pior. Mas eu não. Eu estava bem. Eu estava muito bem. Eu era o valentão do pedaço. Eu era o Álvaro da escola. Eu era Franz Kafka da literatura. Eu era demais. Ninguém mexeria comigo.