sábado, 10 de agosto de 2013

POR ONDE ANDA AQUELE FUSCA DA CAPA DE ABBEY ROAD?

     Um pedreiro ajuda a construir um prédio de luxo. Não será ele um dos condôminos. O dinheiro que ele ganha por ajudar a construir o prédio de luxo não é o suficiente para pagar nem mesmo as janelas de um dos apartamentos do prédio. Mas ele continua ajudando a construir o prédio de luxo. É assim que funciona. Outra pessoa comprará um dos apartamentos do prédio de luxo. Essa outra pessoa tem muito dinheiro. Certamente ela não ganhou esse dinheiro construindo prédios de luxo. Talvez o pedreiro tenha trabalhado muito mais durante toda a vida do que essa outra pessoa. É assim que funciona. O pedreiro está feliz. Não se importa em não morar no prédio de luxo que está ajudando a construir, afinal, o importante é ganhar o salário e sobreviver. As pessoas são felizes assim. Está bom apenas sobreviver. Tentar algo diferente traria muita dor de cabeça. É assim que funciona.
     Fabíola chegou em casa. Já era noite. Para variar, chegou querendo encher a cara. Fabíola só aparece em casa para isso. Ou então quando briga com o namorado e precisa de lugar para esfriar a mente. Não recrimino Fabíola. Não existe nada mais difícil de se encontrar do que um amigo que abre as portas de casa e, ainda por cima, oferece bebida alcoólica. Mandei que pegasse uma garrafa de vinho vagabundo que estava esquecida na geladeira. Voltou bebendo no gargalo. Ficou um tempo falando do novo subemprego que arranjara. Era uma espécie de fábrica que empacotava cigarros para serem vendidos em algum lugar distante.
     "E você pode fumar?"
     "Só se eu quiser ser demitida"
     "Então você empacota cigarros o dia todo e não pode fumar nem unzinho? Qual é o sentido disso?"
     "Sei lá. O salário é ok"
     "Bom, é assim que funciona, não é mesmo? Olha pra essa garrafa, por exemplo. Já parou para pensar que tem alguém que fabrica esse vinho? Quer dizer, deve ter um número grande de pessoas, desde aqueles que fazem a colheita das uvas ao pessoal que coloca no tanque de fermentação, então o vinho fica lá envelhecendo e depois deve ter gente trabalhando no processo de engarrafamento e as pessoas que transportam o vinho para o lugar que você comprou e o repositor do supermercado etc"
     "Você conseguiu cortar o tesão do vinho, Gregório"
     "Porra, Fabíola. É sério. Entende onde quero chegar? Muitas pessoas passaram pelo processo de fabricação até que esse vinho chegasse aqui, fosse consumido por mim em algum momento, ficasse mais um tempo na geladeira e finalmente chegasse ao consumidor final"
     "E daí?"
     "E daí nada, achei que você já tinha pensado nisso. As coisas passam de mão em mão e a gente nem se dá conta. É essa mesma merda que você está fazendo"
     "É, é, deve ser"
     Coloquei o Abbey Road para tocar. Paul abafando o "Shoot Me" de John com o baixo é a melhor forma de iniciar o melhor álbum de todos os tempos. Encontrei uma lata de cerveja perdida na geladeira. O mundo seria outro se todos encontrassem uma lata de cerveja perdida na geladeira. Estava bem gelada. Voltei feliz para a sala.
     "Sabe, Gregório. Eu acho que já pensei nessas coisas sim. Sabe, o limpador de piscina que nunca usa a piscina ou o cozinheiro de restaurante caro que nunca terá dinheiro para levar a família para jantar. Muito foda"
     "É disso que eu estava falando"
     Ficamos bebendo e olhando para a parede durante um tempo. Harrison cantava Something. Parecia que estávamos em transe. Eu pensava em todas as pessoas que passaram pelo processo de fabricação do vinho e da cerveja. Já que elas não puderam aproveitar a bebida enquanto ajudavam na fabricação, ao menos mereciam um gole. Mas apenas Fabíola estava em casa naquele momento. Aquele solo de guitarra era fantástico. Sabe, Fabíola pode comprar cigarros e talvez o limpador de piscina consiga entrar na piscina escondido e cozinheiros até que devem ganhar bem. Eu queria mesmo era dar um gole de vinho para os trabalhadores da colheita. Peguei papel e caneta e comecei a escrever.
     Um pedreiro ajuda a construir um prédio de luxo. Não será ele um dos condôminos. O dinheiro que ele ganha por ajudar a construir o prédio de luxo não é o suficiente para pagar nem mesmo as janelas de um dos apartamentos do prédio. Mas ele continua ajudando a construir o prédio de luxo. É assim que funciona...
     "O que está escrevendo?"
     "O começo de um novo conto. Talvez"
     Não tinha visto o tempo passando. O álbum chegava ao fim. Ringo Starr estava em seu épico solo de bateria. Tudo que é bom, acaba. É assim que funciona.
     "Tem mais vinho?"
     Saímos para comprar.

(Texto disponível também no endereço: http://blahcultural.com/por-onde-anda-aquele-fusca-da-capa-de-abbey-road/)

sábado, 3 de agosto de 2013

ESTOU CHEIO DE TESÃO E NENHUMA BUNDA ME AGRADA

     Acordei. Estava em um lugar estranho. Não reconhecia as pessoas que estavam comigo. Lugar fechado, escuro, com pessoas dançando e bebendo seus drinks de vinte e cinco reais feitos a base de vodka. Um cheiro insuportável de mijo. Não sei por quanto tempo havia cochilado.
     "Gregório, conta de novo aquela história da vez que você se perdeu em Santa Teresa"
     "Mas quem são vocês?"
     "Esse Gregório é hilário mesmo"
     E aquelas pessoas que eu não conhecia riam como se fossem meus melhores amigos. Uma ruiva nariguda ficava esfregando a coxa em mim por debaixo da mesa. Ela usava piercing no nariz e tinha seios pequenos. Completavam a mesa uma garota gorda de cabelo alisado e voz insuportável e um negro que era a cara do Anderson Silva. O negro encheu o meu copo de cerveja e a gorda me olhou atravessado.
     "É sério, quem são vocês?"
     "Quer um histórico detalhado de cada um?"
     "Quero o mínimo para saber onde estou e o que estou fazendo aqui com vocês"
     Deram risada. Não estavam me levando a sério. O negro que era a cara do Anderson Silva bateu nas minhas costas e repetiu que eu era hilário. Eu não estava achando graça alguma. Levantei e fui ao banheiro. O caminho me pareceu familiar. Mijei em pé. Não tinha água na torneira, então não lavei a mão. Um barbudo com jeito de árabe ficou me encarando na saída. Impediu que eu passasse.
     "Qual foi?"
     "Você sujou o chão"
     "Como é?"
     "Você mijou na porra do chão"
     "Vai tomar no seu cu, você é a minha mãe?"
     "Fala direito comigo"
     "Foda-se você. Habib's de merda, vai encher os colhões de outro"
     Tentou me dar um soco, mas consegui desviar. Ele foi em direção as minhas pernas e me empurrou contra a parede. Trocamos alguns socos, mas ninguém conseguiu pegar o outro em cheio. Logo juntou uma pequena multidão em volta e o segurança me agarrou pelo braço e me expulsou daquele lugar. O Al Jazira continuou por lá. Achei justo. Mas eu ainda não sabia onde estava. Agora o meu corpo doía. Comecei a andar sem direção. Acho que a minha vida sempre se resumiu a isso. Andar sem direção e não reconhecer as pessoas que estavam ao meu lado. E eu nem preciso estar sob efeito de álcool para isso acontecer. Eu andava sem direção, morrendo de vontade de sair gritando e correndo. Ao menos seria uma forma de me divertir. Fiquei apenas na vontade. Encontrei um bar. Sentei e logo fui atendido por um garçom careca:
     "Boa noite, chefe"
     "Traz uma cerveja"
     "Só tenho Itaipava e Skol"
     "Que merda. Traz Skol que é menos pior"
     Observei as pessoas. Eu gostava de observar as pessoas. Existe nisso uma sensação inexplicável de poder. É como um biólogo que observa um formigueiro ou um chefe que observa os seus funcionários pelas câmeras de segurança trabalhando oito horas por dia em algo que detestam ou um poder supremo que observa a todos nós através de sua onipresença. Eu realmente gostava de observar as pessoas. Ao longo do tempo comecei a perceber que cada um possuía uma peculiaridade. O que é comum a todos é que são todos detestáveis. Uns mais do que outros. O ser humano se distingue dos outros animais pelo polegar opositor e por ser detestável. Naquele bar não era diferente. Até mesmo o garçom careca, que até então fora muito simpático, uma hora ou outra passaria a ser detestável.
     Observei numa mesa algumas louras com camisetas do Ramones. Parecia ser o fã-clube do Ramones. O clube das louras gostosas fãs do Ramones. Algo desse gênero. Não me senti atraído por elas. Eu estava cheio de tesão, mas nenhuma daquelas bundas me agradaram. Nenhuma bunda daquela espelunca me agradava. O que Joey Ramone faria no meu lugar? Provavelmente o mesmo que eu: beberia sozinho e esperaria que algo acontecesse. Mas esse algo nunca acontece. Eu poderia ficar o resto da minha vida naquela mesa de bar bebendo garrafas e mais garrafas de Skol e nada aconteceria. Eu nem queria que algo acontecesse. Eu só esperava porque era o que me restava. Nada acontece. Nada.
     Pedi mais uma Skol, bebi metade da garrafa e levei o resto em um copo plástico descartável. Estava andando sem direção, novamente. Eu estava muito cheio de tesão. Bebi rápido a cerveja. Encontrei um posto de gasolina grande, daqueles que possuem a sua própria rede de loja de conveniência. Comprei uma garrafa de vinho e cigarros. Fiquei do lado de fora, no canto do posto, fumando e bebendo. Era perigoso fumar ali, perto das bombas de gasolina, mas eu não me importava. Os frentistas também não. Acho que se tudo explodisse estaria tudo bem. Ninguém se preocuparia. Talvez o jornal da tarde teria uma boa manchete. Uma garota me pediu um cigarro. Não sei de onde ela saiu. Começou a falar sem parar.
     "Você não sabe quem eu sou? Você tem certeza que não sabe quem eu sou? Eu usei LSD com os Mutantes! Eu cheirei com o Cazuza! Eu me embriagava com o pessoal da Blitz! Eu que descobri Flávio Basso, antes mesmo do Cascavelletes existir! Eu fui presa com o Lobão! Eu dei pro Roger do Ultraje! Eu que sugeri o nome do Aborto Elétrico e depois do Legião Urbana! Eu fui a inspiração para Bete Balanço! Eu patrocinei o Hanói-Hanói! Eu chupei o pessoal do RPM!..."
     Ela continuou falando. Fui até o banheiro do posto. Não era a primeira vez que me masturbaria naquele banheiro. Esperava não ser a última. Cinco minutos depois eu estava de volta. Ela continuava:
     "... eu comi a namorada do Joey Ramone, eu..."
     A bunda dela não me agradava nem um pouco. Se ela não calasse a boca eu provavelmente chutaria aquela bunda magra dela. Bom, pelo menos eu não estava mais sozinho e nem cheio de tesão. Apesar de tudo, a noite terminaria bem. A noite sempre termina bem. Fumei outro cigarro.

(Texto disponível também no endereço: www.blahcultural.com/estou-cheio-de-tesao-nenhuma-bunda-me-agrada/)