sexta-feira, 1 de março de 2013

AINDA ME LEMBRO DO FIM DE DEZEMBRO


Chovia forte. Meu pai estava no hospital. Fui visitá-lo. Que lugar horrível. Aquela luz branca, aquelas pessoas esperando e aquele cheiro incômodo de sei-lá-o-quê. Era fim de dezembro e fazia mais de vinte anos que não nos víamos, desde que ele saiu de casa por ter agredido minha mãe. Aquele lugar me dava náuseas. Preenchi uma ficha na recepção e devolvi para a atendente loira e gorda que mexia freneticamente no computador. Demorou a reparar que eu já havia preenchido. Então, passei por algumas portas e procurei o quarto. Ele se surpreendeu quando apareci:
“E aí, meu velho! Como você está?”
“Gregório, como vai?”
Estava magro. Cabelos grisalhos, manchas pelo corpo e olhar perdido. Acho que estranhou minha barba e o maço de marlboro vermelho que estava a mostra no bolso da camisa. Ele estava mal para caralho. Não conseguia falar direito. Balbuciou algo que não consegui entender. Precisei me abaixar e encostar a orelha em sua boca:
“Desculpa, meu filho. Desculpa por tudo”
“Deixa disso, já faz tanto tempo”
Ele tentou discutir, mas não deixei. Eu não estava lá para que ele pedisse desculpas. Estava preocupado com a saúde dele. Era somente esse o motivo de estar naquele lugar tenebroso. Se em tanto tempo ele não me procurou para explicar o que aconteceu não seria numa cama de hospital que o faria. Ficamos sem assunto por um tempo. Pensei em perguntar do Palmeiras, mas lembrei que o time estava mal na tabela. Eu estava sem jeito, ali, na frente do meu pai.
“Que foda, hein, pai!”
Ele fez uma cara de “pois é, veja só o que aconteceu comigo”. Que merda que era estar naquela situação. Tanto eu quanto ele. Nunca imaginei que sentiria pena do meu pai. Senti muita pena. E essa sensação tem algo de estranho, essa sensação de sentir pena de alguém. Nesse mundo de informações rápidas não dá tempo de pensar em sentir pena. Quando você vê, já foi. No entanto, lá estava eu, num quarto de hospital com o meu pai, sentindo pena dele. Que belo programa em família.
“Você anda fumando?”
“Fumo, pai. Faz um tempo. Mas eu quero parar”
Mais uma vez o silêncio. Na minha família ninguém fumava, exceto eu. Eu sempre me senti o diferente. O porra-louca que se acaba em nicotina e acha que é escritor. Para o inferno com tudo! Não passava o natal com eles para não ouvir coisas do tipo “mas o seu primo fulano é advogado”. Preferia fumar mil cigarros a aturar meus tios e seus discursos sobre ter um bom emprego e poder oferecer uma vida digna para a família. O que eles sabiam sobre dignidade?
A enfermeira veio e mexeu em alguns aparelhos. Eu conhecia alguns deles por causa dos filmes, mas não sabia suas funções. Se alguma merda acontecesse eu não seria útil. Quando ela saiu meu pai me olhou com um sorriso:
“Gostosa, não é?”
“É, pai”
Talvez ele achasse que eu fosse o culpado. Eu que deveria pedir desculpa? Eu era uma criança na época, não entendia os motivos dele e nunca cheguei a entender. Eu apenas chamei a polícia. Não posso ser culpado. Lembrei-me do policial perguntando meu nome e do meu pai indo para a delegacia na viatura. Porra, pai, você fodeu com tudo, não eu. Ele foi obrigado a sair de casa. Nos três primeiros anos eu ligava para desejar feliz aniversário. Eu tão animado. Ele não ligava nos meus aniversários. Eu me sentia mal. Comecei a não ligar. Por isso odeio aniversários.
“Pai, sou escritor agora”
“Legal”
“Escrevi um poema pra você. Quer que eu leia?”
“Pode ser amanhã? Estou tão cansado”
O poema podia esperar. Isso significava que eu teria que voltar ao hospital no dia seguinte. Não achei ruim. Até gostei. Sorri. Apesar de tudo, era o meu pai. Conversamos. Ele falou sobre a escalação da seleção brasileira de futebol. Eu cagava para futebol, mas para o deixar feliz tive que comentar e xingar o técnico por não ter chamado aquele atacante do Palmeiras.
“Como ele não foi escalado? Esse cara deve estar louco, não é?”
“É, pai. O senhor tem razão”
 Então nos despedimos e fui para casa. Passei pela loira gorda que continuava frenética com seu computador. Ao entrar em casa fui direto para a varanda fumar um cigarro e chorar. Não lembrava como era chorar. A fumaça do cigarro descendo pela garganta e proporcionando prazer enquanto a lágrima corria pelo rosto e morria no azulejo do chão. Poético e bonito, se não fosse triste. Chorava e fumava, enquanto passado e presente se uniam. Era fim de dezembro. A chuva havia parado. Dormi.
No dia seguinte os grilos cantavam quando ligaram do hospital me informando que meu pai havia falecido. Estava quente. Os grilos cantavam. Quantos grilos eram necessários para fazer aquele ruído? Senti que precisava ter lido aquele poema no dia anterior. Os grilos cantavam e meu pai estava morto. Meus tios correram com toda a questão burocrática. Precisei comparecer apenas em seu enterro. Rasguei o poema naquele dia. Era fim de dezembro. Eu já não lembrava mais do poema. Todo ano, na mesma época, os grilos me lembrariam da morte dele. Daqui a vinte anos, no futuro, eu finalmente largarei o cigarro e lembrarei o poema inteiro, palavra por palavra. Eu vou chorar nesse dia. Mas isso somente daqui a vinte anos. Eu ainda não sei que isso acontecerá. Nesse dia, os grilos irão cantar. Mas eu ainda não sei que isso acontecerá. Somente daqui a vinte anos. Tudo por causa do fim de dezembro.