Eu ia passar o carnaval numa chácara em
Embuguaçu com alguns amigos mas desisti no último minuto e fiquei em casa e
eles sofreram um acidente de carro antes de chegar e isso estragou toda a
viagem. Agora está tudo bem com eles. Fabíola chegou domingo querendo encher a
cara e brigar comigo por estar trancado em casa em pleno domingo de carnaval.
“Porra, Gregório.
É carnaval. Sai dessa casa um pouco. Vai respirar um ar, aproveitar o feriado”
Eu não queria
sair. Estava ótimo em casa, longe de estrada e de acidente. Eu estava
aproveitando. A geladeira estava abastecida de cerveja e na televisão era
possível conferir as escolas de samba desfilando com seus carros alegóricos
gigantescos e suas rainhas de bateria mulatas e animadas. Eu comecei a assistir
desfile de carnaval depois de começar a morar sozinho. Achava irônico os
sambas-enredos falarem de países da Ásia ou de tradições europeias. Porra, a
gente estava ou não no Brasil, o país tropical, abençoado por Deus e bonito por
natureza?
“Você já reparou
que os sambas-enredos falam de países da Ásia ou de tradições europeias?”
“Eu não quero
saber, Gregório. Quero que você saia de casa um pouco”
“Não posso”
“E por quê?”
“Estou escrevendo
um novo livro”
“Você está sempre
escrevendo novos livros, Gregório”
“Claro, ainda não
é possível escrever os velhos”
“Digo, você sempre
está nessa paranoia de escrever e escrever. Você precisa viver um pouco também.
Há vida lá fora. Ar, pessoas, movimento”
Eu havia escapado
de um acidente de carro. Eu estava vivendo para caralho. Respirava e sentia o
ar invadindo os meus pulmões e achava essa sensação boa demais. Eu lia jornal,
caminhava para comprar comida e bebida e às vezes curtia um ou dois dias em
algum lugar bem longe. Na maior parte do tempo, ficava em casa tentando
escrever e assistindo filme dublado, mas eu não me sentia desperdiçando parte
da minha vida. Eu quase me envolvi num acidente de carro, então aquilo era
algum sinal divino, algo como “fica em casa mesmo, meu filho, logo eu te
abençoo com um best-seller”. Eu não acreditava nessas coisas divinas, mas nunca
se sabe.
“Eu passei por uma
experiência de quase morte, Fabíola. Agora só quero ficar um pouco em casa
descansando e tentando trabalhar”
“Passou nada, você
nem estava no carro”
“Mas poderia
estar”
A Unidos da Tijuca
entrou na Marquês de Sapucaí e toda a torcida se ouriçou, inclusive eu e
Fabíola nos ouriçamos, afinal, era a Unidos da Tijuca e todos nós esperávamos
para ver qual seria a novidade da comissão de frente daquele ano. Com isso,
Fabíola sossegou, pegou cerveja na geladeira para nós dois e começou a fumar um
cigarro. Estalei a latinha e torci pela Tijuca.
“Você devia ter
ido para Embuguaçu. Passar por um acidente te daria repertório, você poderia
escrever um conto ou uma poesia ou até mesmo um livro. É disso que eu estou
falando, você precisa viver um pouco, não dá para ficar trancado em casa a vida
toda”
“Deve estar sendo
do caralho o carnaval em Embuguaçu”
“Mário
Bortolotto?”
“O quê?”
“Esse texto é
dele, não é?”
“Deve estar sendo
do caralho o carnaval em Embuguaçu?”
“É”
“Não. Eu acabei de
inventar essa frase”
“Tá”
Então a gente
continuou bebendo cerveja e assistindo ao desfile da Unidos da Tijuca.
Aplaudíamos as alegorias como quem aplaude em cena aberta um espetáculo do Zé
Celso. Que merda, eles não podiam ouvir os nossos aplausos lá da Marquês de
Sapucaí, mas a gente aplaudia mesmo assim. Eu me senti um pouco bobo por fazer
isso, mas já estava bêbado o suficiente para me importar.
O telefone tocou.
Era de Embuguaçu. Meus amigos perguntaram se eu estava assistindo a Unidos da
Tijuca. Estavam todos bem, exceto o Douglas que ainda sentia dor no peito por
causa do impacto do cinto de segurança. Desejei bom carnaval e desliguei o
telefone. Fabíola caiu de sono no sofá e o desfile da Tijuca chegava ao fim.
Que espetáculo. Estava pegando mais uma latinha de cerveja quando ouvi Fabiola
resmungar:
“Gregório”
“Fala”
“Bonifácio”
“O quê?”
“Deve ser do
caralho o carnaval em Bonifácio. É o nome do texto do Bortolotto”
“Tá”
“Eu sabia que era
dele”
Que me perdoe
Mário Bortolotto, mas é o carnaval em Embuguaçu que deve estar sendo do
caralho. Brindei aos meus amigos sobreviventes, peguei um bloco de notas,
caneta e comecei a rascunhar: Eu ia passar o carnaval numa chácara em Embuguaçu
com alguns amigos mas desisti no último minuto e fiquei em casa e eles sofreram
um acidente de carro antes de chegar e isso estragou toda a viagem. Agora está
tudo bem com eles. Fabíola chegou domingo querendo encher a cara e brigar
comigo por estar trancado em casa em pleno domingo de carnaval.
Eu estava ou não
estava vivendo?