sexta-feira, 26 de abril de 2013
LETÍCIA
Letícia me cutucou quando percebeu que eu estava quase dormindo. Estávamos assistindo alguma porcaria na televisão. Vinha sofrendo com dores de cabeça a noite inteira. Era um daqueles dias em que não estávamos embriagado. Senti tontura. Era como se um caminhão tivesse passado por cima do meu corpo e o caminhoneiro me xingado pelo retrovisor. Filho da puta! Consegui me rastejar até o banheiro e vomitei. Eu realmente estava com alguma merda. Eu morava com Letícia em um apartamento perto do centro da cidade.
“Meu bem, algo errado?”
“Me leva para o hospital”
Então eu apaguei. Lembro de descer pelo elevador carregado por Letícia, de entrar no carro e de esperar uma eternidade para ser atendido no hospital. Senti fraqueza e segurei o vômito. Se tem algo nessa vida que eu sou bom, mas bom mesmo, é nesse lance de segurar vômito. Letícia pareceu tranquila. Então chamaram o meu número e caminhamos até a sala da médica. Um cubículo branco com apenas uma mesa e duas cadeiras. Letícia ficou de pé respondendo as perguntas. Encaminharam-nos para a sala de coleta de sangue.
Aos poucos a dor de cabeça voltava. Não quis olhar para a enfermeira enfiando a agulha no meu braço e tirando parte do meu sangue, que seguiu imediatamente para análise. Ela aproveitou o mesmo furo para me colocar no soro. Um pacote de meio litro de soro. Pediu para que eu fosse para outra sala. Uma sala cheia de pessoas com as veias furadas e pacotes de soro. Cada pessoa com o seu pacote de meio litro. Era a sala do soro. Preferia as porcarias que assistíamos na televisão. Eu e Letícia nos sentimos acuados. Éramos os novatos da sala. Todos olhando e querendo saber o que de errado eu tinha.
"O que será que você tem de errado?"
"Porra, Letícia! Estava pensando justamente nisso"
Falávamos baixo para não sermos ouvidos. Sem dúvida, era uma das situações mais constrangedoras da minha vida. A sala do soro era apavorante. Os outros conversavam e sorriam e se divertiam e eu e Letícia ficávamos feito dois imbecis tentando entrar nas conversas. Ninguém nos dava atenção. Desistimos e ficamos contando as gotas caindo e imaginando como o soro entrava nas veias e se misturava ao sangue. Ouvi de um rapaz barbudo de óculos que o Seu Antônio, um idoso de boina azul que estava ao lado da porta, já estava indo para o terceiro litro. Não acreditei. A enfermeira chamou meu nome:
"Gregório"
Letícia respondeu por mim. Eu não estava em condições de levantar sequer o dedo. O médico queria falar comigo. Ninguém prestou atenção quando saímos da sala do soro. Eu também não gostava deles. Fomos então encontrar o médico. Na sala havia uma maca ao fundo, uma mesa com cadeiras e vários aparelhos. Convidou-nos a sentar. Eu e Letícia obedecemos.
"Gregório, o seu caso é grave"
"É mesmo?"
"Vamos precisar operar"
"Operar? Mas como? Agora?"
"Sim, senhor"
"Mas o que aconteceu com ele?"
"A senhora é a esposa?"
"Sou"
" Precisamos fazer uma cirurgia para salvar a vida dele"
"Mas..."
E apaguei novamente. Quando acordei, estava numa outra sala do hospital, com uma roupa que não era a minha e com Letícia chorando na janela. Fumava um Lucky Strike. Não sabia que deixavam as pessoas fumarem no hospital. Entendi que estava prestes a entrar na sala de cirurgia. Era isso. Não tinha outra saída.
"Meu amor"
"Gregório"
"O que eu tenho de errado?"
"Você vai morrer, Gregório. Você vai morrer. E eu não vou suportar"
"Não fala isso. O que está acontecendo? Me explica, por favor"
"Meu amor!"
Letícia soluçava e chorava. Eu também comecei a chorar. Chorava por Letícia, não por mim. Não me importava morrer ou viver. Eu estava preocupado com Letícia. O que me importava era Letícia. Lembrei de cada momento que passei ao lado daquela mulher. Lembrei de cada momento que passei ao lado da mulher da minha vida. Lembrei dos nossos porres no bar da esquina e o caminho de volta para casa sem muito sentido de direção. Lembrei do sorriso que surgia em seu rosto ao acordar e perceber que eu estava com todo o cobertor para mim. Lembrei dos nossos dias fodidos sem um trocado no bolso. Lembrei de quando roubamos legumes na feira para ter o que comer no almoço. Lembrei do dia que a conquistei com esse meu papo furado de escritor boêmio que apenas observa a vida passar diante dos olhos. Lembrei do sexo que era maravilhoso. Lembrei do quanto admirava Letícia. Lembrei do quanto a respeitava. Lembrei dos dias em que éramos pegos desprevenidos pela chuva e de como corríamos procurando um lugar coberto. Lembrei das teorias que ela tinha para cada filme do Stanley Kubrick e de como eu ficava fascinado e me perguntava onde ela havia aprendido tudo aquilo. Lembrei da marca de cerveja preferida dela. Lembrei dos seus vestidos. Lembrei de quando fomos ao enterro da sua tia. Lembrei de como ela tentava me ensinar Alemão e de como ela ria do meu sotaque forçado. Lembrei da risada de Letícia. Lembrei de como éramos uma dupla imbatível no truco. Lembrei de cada detalhe de Letícia. Lembrei de cada momento.
Então apaguei.
Acordei em casa, suado e aflito por causa do pesadelo que acabara de ter. Era tudo um sonho. O soro, o hospital, a cirurgia e Letícia. Nunca existiu uma Letícia em minha vida. Eu morava sozinho em um apartamento perto do centro da cidade. Eu não tinha uma mulher. Desesperadamente, tentei dormir e voltar ao sonho. Preferia estar a beira da morte do que perder Letícia. Não consegui voltar àquele quarto de hospital. Durante um ano eu tentaria sonhar com Letícia mais uma vez, buscando um último abraço. Mas Letícia nunca mais apareceria. Eu estava morto.
sexta-feira, 19 de abril de 2013
FOI NUM ROLÊ NA RUA AUGUSTA QUE PERDI A ESPERANÇA NO SER HUMANO
Eu estava sozinho no bar. Outras pessoas estavam
acompanhadas em outras mesas, mas eu não conhecia nenhuma delas. Eu estava
sozinho. Às vezes gosto de estar sozinho no bar, sem precisar ficar criando
assunto e falando merda. O que os outros têm a dizer quase sempre não faz
sentido para mim. É tudo um monte de besteira. Eu agradeceria se o mundo
parasse de falar comigo. Pouco me importa se a pessoa já fumou maconha com o
Bob Dylan ou se já comeu o David Bowie. Eu realmente não me importo. A vida não
pode se resumir a fazer coisas loucas para ter assunto. Não é esse o mundo em
que eu quero viver. Por isso eu estava sozinho no bar. Nada me interessava. Fazia
frio. Estávamos em julho e fazia muito frio naquela cidade. Caos urbano com
seus ruídos e seus muros grafitados. Era o lado B da cidade. Buzinas, puteiros,
garrafas de cerveja quebrando no fundo dos bares e muita vida acontecendo. Semáforos.
Borrões multicores. Vermelho, amarelo e verde. Que viagem! Comecei a escrever
num bloco de notas que eu levava no bolso. Um colega passou na rua e me cumprimentou
de longe. Acho que eu estava com cara de poucos amigos, porque ele se afastou
rapidamente. Borrão vermelho para os carros. Você percebe que a cidade está
fria quando o brilho do semáforo não te emociona mais. Eu costumava me
emocionar. Eu estava tão nostálgico. Mas a cidade já não era a mesma.
Antigamente eu me emocionava. Agora, bebo sozinho. Acho que perdi a esperança
no ser humano.
“Tem Dreher?”
“Tem sim, senhor”
“Desce um então”
O porquê de ter falado “desce um” era um mistério,
afinal, eu odiava essa expressão. O garçom correu para dentro da espelunca
providenciar a minha bebida. Gostava daquele lugar. Olhei para o bloco de notas
e li as frases que nele estavam: “foi num rolê na Rua Augusta que perdi a
esperança no ser humano”, “e se o mundo fosse um filme do Tarantino estrelado
por mim?” e “acho que estou acabando com a minha vida, mas tudo bem, quem se
importa, etc e tal”. Eram títulos de contos que provavelmente nunca seriam
escritos. Às vezes um escritor só possui o título, mas nunca o conto em si. Às
vezes nem isso. Se eu não fosse escritor eu provavelmente seria um sucesso.
Minha mãe sempre me dizia que o mundo era difícil, mas eu era imbecil demais para
acreditar. Eu estava sozinho no bar tentando ser genial. Inocente.
"O Dreher, senhor"
Vi um borrão amarelo enquanto bebia um gole. Sem
chance, a emoção não voltaria. Não se fazem mais semáforos como antigamente.
Talvez eu devesse largar tudo. Se eu fingisse ser louco não causaria tantos
problemas. Certamente seria internado e receberia tratamento gratuito do
governo. Que merda eu fui fazer da minha vida? Eu poderia estar trabalhando no
Terraço Itália, apenas repetindo a frase decorada “boa noite, senhor, seja bem
vindo, quer conferir o menu? Estou aqui para serví-lo, monsier”. Talvez eu
tivesse que fazer a barba. Tudo pelo ofício! Mas que merda, eu não serviria para isso. Bom
mesmo era tentar se emocionar com o brilho do semáforo e beber sozinho. Assim
eu era feliz. Existia amor em SP.
Pensei em ir para a Praça Roosevelt e procurar por
Mário Bortolotto para que ele lesse um dos meus contos, sei lá, para ver se eu
levava jeito e se poderia continuar na área, mas eu provavelmente ouviria um
“vai se foder, cara, ficarei feliz de não encontrá-lo nos próximos 256 anos”. Então
eu daria um soco bem no meio da testa dele. Ou talvez ele tomaria um Dreher comigo
e ficaríamos em paz. Nunca se sabe. O Bortolotto deve ser um cara legal e eu
adoraria ouvir ele dizendo que já fumou maconha com Bob Dylan ou que já comeu o
David Bowie. Talvez o brilho do semáforo da Roosevelt fosse mais emocionante. Mas
não fui para a Roosevelt. Eu continuava sozinho. Como eu adorava estar sozinho.
Sentia tesão mesmo.
“Tem cigarro?”
“Tem sim, senhor”
“Marlboro?
“Sim, senhor”
“Desce um então”
Cigarro aceso. O borrão verde e amarelo e vermelho
começou a se misturar com a iluminação da rua. Era um mix de semáforo com
carros e motos e puteiros. A calçada suja, típica daquele submundo em que eu
estava. O cheiro de vômito. Quanta emoção. Era quase um orgasmo. Que merda não
conseguir escrever sobre aquilo. A vista embaçada. Então vi Mário Bortolotto
atravessando a rua. Borrão verde para os carros. Perigo! Ele correu para chegar
ao outro lado e não ser atropelado. Segundos de suspense. Conseguiu. Que cara
ousado! Voltei a ter esperança no ser humano naquele momento. Ninguém se
importava. Mas se o mundo fosse um filme do Tarantino estrelado por mim se
importariam. Do contrário, levariam um tiro na cabeça. O semáforo me emocionou.
O que mudou? O brilho do semáforo ou o que passei a ver graças a luz emitida
por ele? Mandei descer outro Dreher.
sexta-feira, 12 de abril de 2013
AQUELE DÁLMATA ERA EXTREMAMENTE SURREALISTA
Estava cansado de tudo. Sempre
estou desse jeito, mas naquela terça-feira eu estava me superando. Entrei
no primeiro ônibus que passou e fui parar no centro da cidade. Andei por ruas
desconhecidas até encontrar um bar interessante com algumas mesas na calçada e
sinuca. O lugar tinha um cheiro insuportável de mijo, mas a cerveja estava
muito gelada, então resolvi ficar por ali mesmo. Algumas prostitutas estavam à
disposição num canto e no som tocava Reginaldo Rossi. Clima agradável. Eu
estava curtindo. Já eram onze e meia da noite quando eu pedi a terceira garrafa
de cerveja. Era bom beber sozinho, sem ninguém para encher o saco. Às vezes é
só isso que você precisa: ninguém para encher o saco.
“Senhor, aquela moça pagou um
conhaque para você”
“Está bem, pode trazer”
A moça acenou e sorriu. Não
retribuí. Eu queria ficar sozinho. Por que era tão difícil de entenderem?
Alguns minutos, meio conhaque depois e ela veio em minha direção. Sentou-se ao
meu lado. Ficamos em silêncio durante algum tempo. Esperei que ela puxasse
assunto.
“Que dia feio”
“Pois é”
“Você é de onde?”
“Da cidade”
“De que parte?”
“Do outro lado”
“Entendi”
“Pois é”
“O que você faz da vida?”
“Sou escritor”
“Escreve o quê?”
“Poesias, contos, romances”
“Legal. Quais os temas?”
“Falo sobre mim”
“E as pessoas se interessam?”
“Não me importo. Escrevo sobre
mim porque sou o que eu sei de melhor”
“Entendi”
“Pois é”
Eu estava achando a conversa tão
chata que acabei virando o resto do conhaque de uma só vez. Desceu queimando a
garganta e por um instante senti todo o percurso interno. Depois de quanto
tempo a bebida chega ao fígado? Enquanto mantinha a dúvida na cabeça, observei
a minha companheira de mesa. Era bonita, tinha um rosto gordo e olhos verdes.
Belo par de seios gordos. Mas não era gorda.
“Você é prostituta?”
Ela riu. Eu não achei a menor
graça.
“Você acha que se eu fosse
prostituta pagaria um conhaque para você?”
“Talvez”
“Não sou. Eu sou artista plástica”
“Legal”
“Não quer mais uma cerveja?”
“Estou quebrado”
“Eu pago”
“Tudo bem”
Ela pediu mais uma garrafa e um
copo para ela. Comecei a gostar dela, mas não demonstrei interesse. Aprendi com
o tempo que não se deve demonstrar interesse pelas pessoas. Truques que a vida
ensina. Eu já me decepcionei demais. Bebemos e conversamos sobre política e
MPB, não ao mesmo tempo. O papo começou a ficar bom. Bebemos mais duas garrafas
e pedimos a conta. Ela pagou tudo. Quando percebi, estava indo para a casa
dela. Não lembro o caminho que fizemos. Subimos três lances de escada para
chegar ao apartamento e eu pensei que não conseguiria e já estava quase
desistindo, mas quando vi já estava dentro do apartamento da artista plástica
com um dálmata lambendo a minha mão e todos aqueles quadros na parede. O quão
bêbado eu estava?
“Quem são?”
“Esse é Miró. Aquele é Cézanne.
Perto do banheiro é Dalí. E ao lado da porta da cozinha são vários do Picasso”
“Esses caras são fodidos”
Eram fodidos mesmos. Achei tudo
muito interessante. Ela sumiu e eu fiquei conversando com o dálmata. Perguntei
a ele o que eu estava fazendo naquele lugar. Não obtive resposta. Ela voltou
com uma garrafa de vinho e duas taças. O cachorro continuava lambendo a minha
mão. Aquele dálmata era extremamente surrealista. O vinho já descia pela
garganta. Ela mostrou alguns quadros que havia pintado em Paris, quando morou
por cinco anos na Europa. Pegou no meu braço:
“Quer ouvir algo?”
“Podemos pular essa parte?
“Que parte?
“Vinho, música, et cetera.Vamos
direto ao sexo”
Eu estava bêbado. Nunca consegui
ser romântico com as mulheres. Acho que é por isso que eu não consigo uma
namorada. O maior problema do ser humano é justamente a obrigação de se
relacionar com outro ser humano. Eu só queria alguém. Alguém para dormir ao meu
lado. Alguém para assistir alguns filmes do Woody Allen comigo. Alguém para
dividir uma garrafa de cerveja no final de semana. Alguém para me dar a mão
quando eu estivesse com depressão ou com vontade de acabar com a própria vida.
Alguém para viajar comigo e encher a cara de cachaça e dormir no banco da
praça. Alguém para ler as minhas poesias e criticar sem pudor. Alguém para me
servir de inspiração nos dias em que faltasse criatividade. Alguém para dividir
rivotril. Alguém para odiar Pink Floyd tanto quanto eu odeio. Alguém para fazer
purê de batata. Alguém para brigar comigo quando eu merecesse. Alguém para ler
Baudelaire. Alguém para discutir Sartre e Heidegger. Alguém para tomar um
sorvete. Alguém para rir. Alguém para chorar. Alguém. Eu só queria alguém. Eu
só queria descobrir o amor em alguém.
Fodemos. Era bom estar naquele
lugar. Acordei de manhã. Com cuidado, levantei da cama. Escovei os meus dentes
com a escova dela. Calcei os sapatos. Ela dormia docemente. Parecia em
harmonia. Foi uma visão bonita. Eu não estava pronto para ter alguém ao meu
lado. Deixei-a dormindo. O dálmata veio lamber a minha mão pela última vez.
Olhei para as paredes e tentei lembrar qual era Miró e qual era Dalí. Não
importava. Abri a porta com muito cuidado para não fazer barulho. Encontrei o
faxineiro do prédio no corredor.
“Opa”
“Opa”
Desci as escadas e nunca mais
voltei. Eu estava sozinho. Eu deixava alguém para trás, mais uma vez. Melhor
assim. Sentiria saudades dela, dos quadros e do dálmata.
sexta-feira, 5 de abril de 2013
NÃO CONSIGO SAIR DO MEU QUARTO PORQUE A MINHA CABEÇA ESTÁ GRANDE DEMAIS
Não consigo sair
do meu quarto. Poderia inventar mil e trezentas justificativas, mas prefiro
falar a verdade. Não consigo sair do meu quarto porque a minha cabeça está
grande demais. Sei que é difícil de acreditar. Eu mesmo daria risada se me
contassem essa história. Não consigo sair do meu quarto porque a minha cabeça
está grande demais. Poderia utilizar uma das mil e trezentas justificativas e
dizer que não consigo sair do meu quarto porque estou muito cansado e deprimido
ou dizer que não consigo sair do meu quarto por pura preguiça. Ao invés disso,
prefiro revelar o verdadeiro motivo. Minha cabeça está grande demais e não
passa pela porta. Eu quero sair do quarto, mas não consigo porque a cabeça não
passa pela porta. E quanto mais eu explico e repito e dou detalhes, mais
inacreditável fica essa história. Poderia recorrer mais uma vez às minhas mil e
trezentas justificativas e jurar que não consigo sair do quarto por ter medo de
enfrentar a sociedade cruel e as suas mandíbulas traiçoeiras. Poderia falar que
tenho medo do mundo em que vivo e isso seria muito "natural, muito bem,
obrigado". Poderia falar que tenho medo de morrer atravessando a rua, medo
de morrer sozinho numa mesa de bar após encher a cara de álcool ou medo de cair
da janela do décimo primeiro andar. Mas não seria verdade. Eu não consigo sair
do meu quarto porque a minha cabeça está grande demais e não passa pela porta.
Na noite anterior,
ao dormir, a minha cabeça estava normal. Não faço ideia de como deve ter sido o
seu processo de crescimento e nem do surgimento dessa anomalia. O que eu sei é
que não consigo sair do meu quarto porque a minha cabeça está grande demais e
não passa pela porta. Também não consigo passar pela janela e continuo achando
essa história estúpida e realmente foi algo bem estúpido tentar passar pela
janela. As partes do nosso corpo não crescem de um dia para o outro de forma
tão absurda. Garanto que não consigo sair do meu quarto porque a minha cabeça
está grande demais e não passa pela porta. Achei mais apropriado dizer a
verdade, porque o meu lado poético se utilizaria de uma daquelas mil e
trezentas justificativas dizendo que não consigo sair do quarto porque não
quero mais me apaixonar e completaria afirmando que a paixão é o sentimento
mais idiota que um ser humano pode ter e que como toda a humanidade é
completamente idiota esse é o sentimento que mais se aproxima do que deve ser a
nossa essência. Somos todos ignorantes e não sabemos exatamente o que queremos.
Somos todos filhos das putas uns com os outros e corajosos o suficiente quando
nos olhamos nos olhos e dizemos “bom dia”. Como é difícil viver no meio de uma
sociedade hipócrita, porque ao se dar conta disso você acaba se tornando cada
vez mais imundo. Não consigo sair do meu quarto. Resolvi ligar para o meu
médico:
“Bom dia, doutor”
“Bom dia,
Gregório”
“Não consigo sair
do meu quarto porque a minha cabeça está grande demais e não passa pela porta”
"Que besteira
é essa, Gregório?"
"É verdade,
doutor"
"Isso não é
mais um dos seus romances?"
"Não,
doutor"
“Então é simples.
Ela deve estar cheia de pensamentos. Esvazia a mente e tenta sair do quarto em
trinta minutos”
“Obrigado, doutor”
Desliguei. Fiz o
que ele recomendou. Pensei em coisas supérfluas e assisti televisão. Finalmente
consegui sair do meu quarto. Não havia justificativa.
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